CONTRIBUIÇÕES IMORTAIS: "A Ronda", conto de Bernardo Evangelista Lopes

A RONDA

BERNARDO EVANGELISTA LOPES
Membro-fundador da Academia de Ciências e Letras de Sabará
Cadeira 17. Patrono: Júlio Ribeiro


Chegaram ao trailer, polegares encaixados nos passantes da calça.
Eduardo se apoiou no balcão e pediu dois cafés. Numa mesa próxima, três clientes corriqueiros, cerveja no copo talvez cedo demais, calaram-se à aproximação dos homens fardados — e, sem tampouco dizer oi, a proprietária do estabelecimento se precipitou devagar e encheu na máquina dois copinhos descartáveis. Depois estendeu um para cada, mas Eduardo pegou os dois, porque Pedro estava de olho num ponto da curva da estrada.
Eduardo sentiu a mulher fitá-lo. Não captou nenhum esboço de sorriso, mas sorriu de volta mesmo assim. Devia ser desse jeito com todos os clientes, pensou ele, embora visse certa esquiva brilhar nas feições dela. Como se eles dois pudessem causar qualquer coisa de ruim à sua pessoa ou a seus clientes; como se não devessem estar aqui.
Em vários lugares a que iam, eram recebidos daquela forma.
Caminhando até o meio-fio, entregou um dos copinhos a Pedro. Ele cheirou o vapor antes de levar o plástico à boca, olhos na estrada por cima dos óculos escuros, distraidamente, sem fitar algo específico. Tomou do café. Eduardo fez o mesmo.
Pedro se voltou, de repente: "Cê pagou?"
Um movimento contido dos ombros, "Ainda não", disse por dentro do copo plástico, e sentiu o líquido quente arder na ponta do lábio superior. Talvez fosse requentado, o café: parecia mais espesso, gosto mais-ou-menos bom.
"Quanto que é?"
Eduardo não respondeu. Vinha fazendo como Pedro, fitando o ponto vazio na estrada, como se aquele mesmo nada também lhe tivesse chamado a atenção. De súbito se virou para a mulher. "Quanto é?" — e os três sujeitos à mesa pararam de falar novamente. Eduardo notou um olhar fixo do homem na ponta, barrigudo e de bigode grisalho, a roupa que parecia estar no corpo há dias.
Do interior sombreado do trailer, de onde vinha respondendo à conversa dos clientes com uma risada entrecortada, o rosto da mulher reassumiu a aparência séria. Ela deu um passo à frente, em direção à luz: "Dois reais."
"Cê tem nota de dois aí?", Eduardo se virou para o amigo. Pedro apalpava os bolsos. Eduardo podia até ter uma consigo, mas já tinha tido o trabalho de perguntar.
A nota surgiu entre os dedos de Pedro, erguida no ar para Eduardo, que não percebeu: tinha voltado a fitar o nada, bebericando absorto seu café. Pedro desistiu. Subiu na calçada, alcançou o balcão; pagou com um sorriso — "Brigado" — e assentiu para a mulher com a cabeça, depois para os homens. O barrigudo não desviava o olhar deles. Pedro parou ao lado do parceiro de ronda.
Eduardo tomou mais um golinho. Pedro quase recuou; achou que ele ia pousar o cotovelo em seu ombro.
Foi só impressão.

Mais tarde naquele dia Eduardo saiu do escritório do tenente em direção à sala de TV, uma salinha de descanso onde papeavam e no almoço comiam suas marmitas. Jorge e Roberto estavam sentados numa das mesas quadradas de quinas arredondadas, herdadas da antiga escola pública onde hoje funcionava o batalhão. Os rostos dos dois colegas se voltaram para trás quando ouviram o som de suas botas de borracha. Passava jornal em um canal da TV a cabo. Disseram o "Ho" de sempre para Eduardo, que respondeu com um "Ho" leve, mais leve do que planejara, e acariciou a região da boca do estômago enquanto se dirigia ao filtro de barro. Pegou um copinho da embalagem metálica e o estalo do plástico lhe despertou um enjoo. Abriu a torneirinha e ouviu a água cair no fundo do copo junto à voz de Jorge direcionada a Roberto e a televisão no fundo com notícias que não queria ouvir.
Passeou os olhos, desconfiado, pela sala: os livros didáticos abandonados nas estantes baixas tinham lombadas o quê, borradas? Eduardo forçou os olhos, e as cadeiras da sala também estavam meio indistintas, àquela distância pareciam tão longe, pensou, estavam longe demais, pensou, a imagem de Jorge e Roberto, de costas, era sim mais nítida, mas, bem, não tão nítida; a sala tinha se ampliado para um salão tão, ah, pensou, tão, ah, medieval quem sabe; estranho; cores borradas. Vista cansada. Certamente. Conteve um soluço.
Não via Pedro desde as onze da manhã. Bebeu da água. A última vez em que o vira foi na esquina do corredor perto do banheiro masculino. Depois perguntara aos outros, e lhe disseram que Pedro tinha ido para casa — ido embora, não estava se sentindo bem.
Eduardo pousou o copinho ao lado do filtro e as mãos no joelho, e vomitou. Ouviu um esgar alto atrás de sua cabeça enquanto o líquido azedo, pastoso, se projetava da sua boca, tropeçando no queixo sem barba, se derramando pelo chão. Depois entendeu que o som gutural que tinha ouvido viera de sua própria garganta, e já Jorge e Roberto arrastavam suas cadeiras e tropicavam por entre as mesas na sua direção. Quando já estavam bem perto, o barulho de seus passos se misturava a uns sons estranhos e distorcidos, e eles dançavam duplicados num borrão em frente aos olhos do soldado.
A mão de alguém pousou sobre suas costas, e ele via aquelas calças caquis e os coturnos dos colegas e tentava enxergar bem aquela mancha amarelada no chão e entender o que ela significava. Um de seus joelhos já estava apoiado no assoalho, quando mais um jato azedo veio, retorcendo seu diafragma.

Antes das 16h Eduardo e Pedro já estavam mortos. Jorge interagia de pé em meio à falação do pátio do batalhão quando a tarde arroxeou para a noite. Teria de ligar para a mãe e dizer que ia chegar mais tarde que o esperado; que talvez nem voltasse hoje, e imaginava-se ali nos dois dias seguintes, discutindo a história pelos cantos das antigas salas de aula e comendo broa de fubá trazida ou doada por alguém. No fim das contas falariam tanto de Eduardo e Pedro que por um momento se esqueceriam de que eles tinham morrido; depois todos se lembrariam, e continuariam a falar neles, com aquela curiosidade especulativa. Todo mundo devia querer ficar por aqui noite adentro. Ninguém ia querer ir para casa. Ao choque se misturava o senso de aventura; de algo novo, fora dos padrões.
A uns metros de distância, Roberto era questionado de vinte em vinte minutos sobre como Eduardo tinha passado mal na sala de TV. Jorge reiterava aquela versão: fora assim mesmo. E, apesar de usar as mesmas palavras nos diversos relatos repetidos a meia voz, Roberto alternava os gestos, representando com diferentes níveis de teatralidade e ênfase os estágios — alongados, aqui — do desastre, de acordo com a reação do público.
Não mentiu. Tinha tudo se desdobrado muito rápido; era necessário distender os fatos para tentar entendê-los. Jorge só tinha dúvidas de se fora ele mesmo ou então Roberto quem perguntara ao falecido Eduardo Tá tudo bem, Edu? — mas não acreditava que esse fosse um detalhe importante.
Já Pedro tinha morrido em casa, em sua cama — xícara de chá na mesa de cabeceira?, Chapolin passando na TV?, sua mãe o tinha coberto com uma manta xadrez cinzenta maldizendo a febre, dado a ele um Tylenol, prometendo que ele ia melhorar? —, e o Cabo Augusto e o Cabo Leonardo tinham ido para lá, ou talvez estivessem no IML com a família de Eduardo. Tinha-se a dificuldade de descobrir o que as duas vítimas poderiam ter feito antes de voltarem ao batalhão para o almoço, após a ronda matinal, que os tivesse levado à fatalidade — Pedro ainda antes que Eduardo, que, por sua vez, não enfrentara a febre, apenas o vômito, antes de o levarem para o hospital.
Tinha sido mais doloroso para Pedro, que ainda tivera uma lutinha — "coisa-besta", teria dito sua mãe? — contra os sintomas.
Talvez tivessem conversado, as duas vítimas, depois que Eduardo soube que Pedro tinha ido para casa — checaram seu telefone? — Não tô sentindo bem, Pedro teria digitado, Que isso, Eduardo teria escrito, que que cê tem?, e mais tarde viria ele próprio a sentir a coisa chegar.
No hospital, Juliano ouvira Eduardo relinchar coisas como Eu vou melhorar na maca pelo corredor azulejado, olhos revirando e lábios pálidos, o único realmente com fé de que não passava de uma virose antes mesmo que chegassem a um médico que poderia lhes dar um diagnóstico consciencioso.
Segundo Juliano, não mais de vinte minutos depois de enfiarem Eduardo num consultório, veio a notícia.
"Deve ser alguma coisa que eles comeram", disse o major a um bolinho de soldados, enquanto a investigação formal começava a ser protocolada em outra sala. Tentaram pesquisar se eles tinham almoçado, e a maior parte dos soldados se lembrou de terem comido marmitinha todos juntos no batalhão, por volta de meio-dia e meia. Todos os outros estavam bem. Devia ter sido alguma intoxicação. Gastaram tempo tentando se lembrar os primeiros lugares a que os dois tinham ido de manhã, e aparentemente não tinham feito nada de espetacular; parecia que só tinham ido para a entrada do bairro Esmeralda, depois da rodoviária, perto do trailer.

Ele mexia no cabelo úmido e moldava protótipos de topete através de seu reflexo no vidro fumê do box do chuveiro. Via seus joelhos peludos projetados à frente, e entre eles, na imagem refletida, a escuridão que omitia o baixo-ventre, um abismo verde-musgo pelo qual subia da água o odor de domingo passado, quando tinha bebido tanto com o cunhado, mais que o de costume, que até hoje estava cagando com cheiro de banheiro-químico.
Sentia um peso interessado na região da bexiga, que o box não refletia. Sua namorada estava no quarto ao lado. Ele puxava o papel higiênico enrolando-o em quatro dedos da mão e depois destacando essa medida, limpava por trás, e então dobrava, como o tinham ensinado a fazer quando pequeno. Com a ponta do dedão do pé apertava o dispositivo da lixeira, e jogava o papel fechado lá dentro na sacolinha de supermercado. A tampa retinia quando se fechava com um baque, o ruído crespo do plástico se inflando, depois quieto.
Então se levantou, pau meio duro, e deu a descarga olhando primeiro com interesse, depois nostalgia, então tranquilidade. Podia bater uma punheta antes de sair do banheiro, pensar em outra — ela ia achar que ele ainda estava cagando —, mas podia simplesmente ir para o quarto e meter mesmo — mas aí ia ter que tomar banho antes, rápido. Tinha acabado de cagar, afinal de contas. Só uma lavada para evitar o cheiro de papel higiênico esfregado.
Decidiu que ela estaria vendo novela e não ia querer transar, e ele ia ter que só ficar deitado ao lado com a mão dedilhando a calcinha, e ela fingiria que nada estava acontecendo até a novela acabar — ela não arriscava fazer nada durante as propagandas, porque podia voltar a qualquer momento. Então ele só lavou a mão, pegou a arma na superfície da pia e saiu para o quarto, e fez exatamente como tinha imaginado, cabeça na coxa dela, ela com olhos só para a TV e uma mão tocando o ombro dele, como por educação, e ele tinha decidido não dedilhar a calcinha dela como que para fazer charme, mas acabou ousando, e ela apertou um pouco o pescoço dele, e ele rolou preguiçosamente até ficar em cima dela e deixou que ela olhasse para a TV por sobre seu ombro. Ele ronronou ao pé do ouvido, manhoso, uma atuação, pressionando a região dura contra a tala quente e acolchoada. Ela tinha aberto a boca para um beijo, mas só ele tinha escovado os dentes; fingiu não ver. Forçou um pouco mais lá embaixo as duas regiões, ela estava um pouco molhada, tamborilou a ponta dos dedos nos músculos das costas dele, uma mania de que ele tinha aprendido a gostar.
Em silêncio, ele baixou a mão e cavou a haste severa para fora, no mesmo movimento arredando a calcinha dela, onde entrou, reconfortado. Ela respirou fundo. Ele não soube se porque tinha sido bom ou se, na "fricção" (ela usava essa palavra), tinha doído um pouco. Não perguntou, para, no caso de estar ruim, esquecer-se tudo ali mesmo, e ficou quietinho. Continuou o movimento leve na umidade quente do acolchoamento, ouvia os próprios roncos baixos, intermitentes, abafados contra o travesseiro, meio sufocado ao lado da cabeça dela.
Quando gozou, ele pulou de volta para o lado, de barriga pra cima, um joelho dobrado para o teto.
Então falou de Eduardo. "Nem 'maginava qu'isso foss'acontecer quand'ele passou mal daquele jeit'aquela hora." Olhava para o teto branco, antebraço sobre a testa.
"Ninguém nunca imagina", ela disse para a TV.
"É, mas, tipo, a gente tentou ajudar, mas só na ambulância que a gente mei' que sacou que talvez outra cois'ia acontecer."
Ela ficou calada por um instante. Depois uma mão delicada deslizou sobre o peito dele, puxou um cabelinho. "'Ssas coisa' acontece."
"Eu sei. Tô me culpan'o não."
"Descobriu que que aconteceu?"
"Ficaram de me mandar mensagem no grupo."
Ela deu uma olhada para o celular dele sobre a mesa de cabeceira, abaixo do abajur sem lâmpada que era a cara da mãe dele e que — ele nunca parecia perceber — só provava o quanto, ainda que incongruentes com aquele jeitão de marmanjo, vários dos objetos de que ele não conseguia se desfazer ainda estavam ali por terem sempre feito parte da sua vida. Ainda esses dias ela vira, no armário dele, roupas da época em que ele era criança e vivia na fazenda do avô, sei-lá-onde. Moeda? Macacos. Um desses lugarezinhos.
Mas talvez combinasse, pensou ela, talvez tudo aquilo combinasse com o ambiente. Mas ele não podia mais dizer, pensou ela sozinha, que não era apegado à infância e a suas histórias da adolescência. Eu não, ele dizia. Mas então por que, ela redarguia, mentalmente, então por que seu quarto não envelhece...? As fotos no porta-retratos ainda eram as mesmas. De sempre. Ele nunca entenderia essa pergunta. Nunca teriam essa conversa.
Ela observava. Cê é o menino da mamãe.
Deixou-se esticar as pernas ao longo do colchão, e eles ficaram deitados à mesma altura. Ela se virou e o abraçou de lado. Ele tinha hoje um cheiro meio azedo por causa dos anabolizantes, mas ela tinha aprendido a gostar, algo do cheiro antigo estava lá, inclusive nas cuecas.
E ele ainda usava o mesmo desodorante de quando tinham se conhecido vários anos antes.

Foto: Fabiano Lopes

Comentários

  1. Brilhante como sempre, querido! Como é bom ler seus tecidos...

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  2. Viciante esse gostinho metálico de quero mais no céu da boca...

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  3. Que baque e que enredo. A história vai continuando na minha cabeça. Aquele café...

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  4. Parece que essa historia ainda vai render

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  5. Muito bom, Bernardo! Impossível não tentar imaginar a continuação!

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  6. Leve, suave e solto!! Muito bom Bernardo! Como disse a Lígia, também imagino e aguardo uma continuação... Parabéns!!

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  7. Bernardo, vai nos deixar aqui suspeitando do café tomado no trailer?! Ah,querido! Continue por nós, seus fãs, por favor!!!!

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  8. Sou sua fã!.... eu adoro quando o final fica para ser degustado por minha conta! Demais!!!

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  9. Narrativa instigante com pistas quase deixadas pelo narrador. Digo quase deixadas porque antes mesmo que uma sugestão seja totalmente processada, outra já chega sem nenhuma cerimônia e cerca o leitor com seu poder de persuasão. O que pode ter desencadeado a tragédia? A mulher que não sorri para os dois personagens principais? O café? Os sujeitos três em uma mesa; ou melhor, um dos três, o barrigudo que parecia usar a mesma roupa há três dias? Juliano, que se justifica com a namorada sobre Eduardo a caminho do hospital? “(“ Eu sei. Tô me culpan’o não.”)
    Será a ronda que foi desviada da rota e... ?
    E aí, Bernardo?! Isso que é colocar o autor na roda, na berlinda, na busca de uma explicação. Parabéns!

    - Alzira Umbelino

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  10. Nossa!fiquei com gostinho de quero mais...Amei!!!

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