Especial: "Helena: a protagonista da própria vida — e o que isso tem a ver com a gente", de Gardênia Pereira
Neuropsicóloga e Participante do Grupo de Leitura Machado de Assis da ACLS
HELENA:
A PROTAGONISTA DA PRÓPRIA VIDA
— E O QUE ISSO TEM A VER
COM A GENTE
[Este texto pode conter spoilers da trama]
Começo
esse texto com um dado extremamente triste e preocupante: o Brasil hoje é um
país em que pouco se lê. Se você leu um livro ao longo deste ano, você faz
parte de um grupo que, segundo pesquisa recente, perde mais e mais
leitores. A título de curiosidade, essa mesma pesquisa aponta, por outro lado,
alguns dos autores preferidos do público leitor — e no topo está o nosso
brilhante Machado de Assis, o ícone do nosso Grupo de Leitura da
Academia de Ciências e Letras de Sabará.
Antes
de entrar no mundo de Helena, acredito que seja importante mencionar o papel do
clube de leitura, que em meio a nossa rotina corrida nos faz parar e nos
entregar a desafios como ler Machado. Sinto que ele está sempre
pronto a me surpreender a cada página — e não acho que essa seja uma
experiência individual. Pelo olhar da Psicologia, o grupo de leitura nos
proporciona diversas vivências: conexão com pessoas que nunca haviam se visto;
desafio de ler um livro que talvez não fosse a primeira escolha de muitos; uma
atividade terapêutica que nos coloca no momento presente; a melhora da nossa
percepção; a expansão da nossa visão de mundo, entre outros inúmeros
benefícios.
Helena,
romance publicado em 1876, que apesar de mais de cento e quarenta anos ainda
conversa perfeitamente com a atualidade: ao abrirmos suas páginas, imergimos no
mundo dela, a Protagonista com P maiúsculo, que nos intriga do início ao
fim. Talvez por existir um narrador externo à história, vamos caminhando
capítulo a capítulo nas nuances do que é ser uma mulher consciente de seus
desejos, vontades e escolhas.
“O
que ali faltava era justamente o cortejo, a graça, a travessura, um elemento
que temperasse a austeridade da casa e lhe desse todas as feições necessárias
ao lar doméstico. Helena era esse elemento complementar.” (Capítulo III)
No
outro lado da moeda, está o outro personagem principal: Estácio, uma figura que
cativa, porém, com um olhar mais atencioso, percebemos como não consegue tomar
decisões e bancá-las. A impressão que fica é que não consegue se
responsabilizar pelas suas vontades. Alheio, negando e negligenciando os
próprios sentimentos.
“—
Seu sobrinho aceita as coisas filosoficamente e até com satisfação. Não
compreendo a satisfação, mas concordo que nada mais há do que cumprir
textualmente a vontade do conselheiro.” (Capítulo II)
Somos
surpreendidos quando Machado nos serve um romance com um pano de fundo
dramático e denso que, ao longo da história, rouba a cena, nos mostrando que o
amor romântico é uma parcela, não o todo. Parafraseando Taylor Swift,
Estácio chegou para uma luta de armas de fogo com uma faquinha de cortar pão,
ou seja, pouco há para fazer em um cenário no qual ele não tem todas as
ferramentas necessárias para lutar, e acima de tudo não enxerga o
todo.
Na
outra face dessa história, temos Salvador, um personagem tão importante para as
origens da protagonista. Por mais singelas e bonitas que fossem suas palavras,
pouco sobrava para atitudes concretas, nas quais, penso eu, talvez fosse o
possível — e o bastante — para mudar o destino de Helena.
Acredito que, apesar do amor romântico, as escolhas dela tinham a ver
primeiramente com ela, e talvez por isso e por tamanha intensidade seu
corpo tenha sucumbido à amplitude de suas emoções.
O
protagonismo da nossa vida está ligado às nossas escolhas.
“Helena
tinha os predicados próprios a captar a confiança e a afeição da família. Era
dócil, afável, inteligente. Não eram estes, contudo, nem ainda a beleza, os
seus dotes por excelência eficazes. O que a tornava superior e lhe dava a
probabilidade de triunfo era a arte de acomodar-se às circunstâncias do momento
(...).” (Capítulo IV)
Ser
o protagonista da nossa vida não combina com uma vivência pautada nas
aparências, é justamente o contrário. O recorte daquela sociedade se assemelha
talvez ao nosso recorte atual: o “viver de aparências” parece não sair de moda.
As pessoas estão carregadas de medo de fazer algo levando consigo suposições em
que aparências devem ser mantidas, perdendo assim a autenticidade da própria
existência.
“—
Conheceu a mãe dela? perguntou a irmã do conselheiro.
—
Conheci.
—
Que espécie de mulher era?
—
Fascinante.
—
Não é isso; pergunto-me se era mulher de ordem inferior, ou...”
(Capítulo II)
As
origens de Helena eram uma questão frequente ao longo da história e, apesar
disso, nossa mocinha consegue transitar por entre as expectativas e surpreender
não só aquelas pessoas, como também o leitor. Demonstrando assim que, tal como
sua presença, suas atitudes também se mostravam únicas e autênticas. O que
seria a vida então além de viver aprisionado nas expectativas do que os outros
acham ser o certo para você?
Outra
lição que tiramos desse livro é nossa visão limitada do todo. Não há como saber
sobre tudo que acontece à nossa volta. Existem versões de uma mesma história,
de uma situação a que provavelmente não temos acesso. Assim como no livro, cada
um dos personagens conhecia uma parcela da verdade, e isso por si só não
deveria ser um limite determinante para tomar escolhas coerentes com seus
desejos.
Portanto, termino desejando um mundo com mais Helenas, que, mesmo
entendendo a complexidade de suas decisões, não hesitam em tomar atitudes que
fazem delas mulheres autênticas, fortes e protagonistas da própria vida.
E por menos Estácios “estacionados”, que, ao invés de tomarem decisões
baseadas em suas próprias vontades, acabam esperando serem escolhidos,
ao invés de escolher.
Gardênia Pereira
Neuropsicóloga e Participante
do Grupo de Leitura Machado de Assis
Helena é o quarto livro de Machado de Assis lido pelo Grupo de Leitura Machado de Assis, que pretende ler toda a obra longa do mestre. O grupo é organizado e moderado pelo escritor e professor Bernardo Lopes, Presidente da Academia de Ciências e Letras de Sabará, que apoia o projeto junto à Prefeitura Municipal de Sabará. No primeiro semestre de 2025, leremos juntos o romance Iaiá Garcia, de Machado de Assis. Acompanhe nossa página do Instagram para o anúncio das datas! É Grupo de Leitura é gratuito e seus encontros são semanais e presenciais.
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Excelente texto, meus parabéns!
ResponderExcluirQue bom tê-la aqui. " Protagonistas da própria vida", sim, é assim que temos que ser. Abraço.
Selma
Uau!!! Cada vez mais fico triste por não ter relido Helena! Ainda bem que você,a Mirtes ... estão nos presenteando com a visão ampliada dessa obra!
ResponderExcluirParabéns!!! Salve o grande Machado! Viva nosso mestre Bernardo E.Lopes! Viva os machadianos nos ajudando a ser "protagonistas de nossas Vidas"! Bjos!
Mônica Maria
A exposição das várias leituras de Helena têm sido muito boas, acrescentando muito ao nosso olhar sobre Machado de Assis. Gratidão. Silvana Maria Fernandino
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