CONTRIBUIÇÕES IMORTAIS: "Desço daqui nunca mais", crônica de Ana Maria Guerra Machado
DESÇO DAQUI NUNCA MAIS
ANA MARIA GUERRA MACHADO
Membro-fundador da Academia de Ciências e Letras de Sabará
Cadeira 8. Patrono: Benedito Machado Homem
Quintal de vó é a coisa mais gostosa para uma
criança. Principalmente, essa da nossa história de hoje. Menina de imaginação
fértil. Tinha no quintal a melhor parte da casa. O quintal era grande. Tinha um
tanto de árvores frutíferas, flores, verduras, e lá no fundo ficava uma parte
proibida, mas deliciosamente desejada: o galinheiro. Sempre que podia, entre
uma brincadeira e outra, a menininha parava com as mãos nas telas de arame e
ficava prestando atenção no movimento lá de dentro. As galinhas e os galos passeavam
pelo seu mundo, alheios a tudo aqui fora. Às vezes ciscavam, corriam, tentavam
um voo inútil, se bicavam, cacarejavam... e o tempo ia passando. Viviam ali.
Daquele jeito.
A vovó contou, semana passada, que haviam nascido
vários pintinhos. E já avisou mais uma vez que ninguém poderia pegar neles. “Tá
bom.” Mas o aviso foi dado semana passada... já tinham se passado vários dias.
Hoje, a vovó não disse nada. Então, hoje, a menina visitaria os pintinhos. Não.
Seria obediente. Iria vê-los, através da tela... Assim, saiu decidida de casa,
de mãos dadas com a mamãe, que a deixava lá diariamente, enquanto ia para o
trabalho.
Na casa da vovó, esqueceu-se tanto da determinação
quanto da visita programada. Arrastou várias panelas velhas pro quintal, pra
fazer comidinha. Os gatos (pobre coitados!) eram seus companheiros de aventura.
Mas a brincadeira durava pouco tempo, porque os bichanos não tinham muita paciência
com o carinho exagerado, nem se interessavam pelos bolos de barro, enfeitados
com folhas e pétalas de rosas.
A vovó ficava sentada à distância, mas, toda vez
que a menina olhava, estava olhando pra ela. Difícil a vovó sair daquela
cadeira. Ela crocheteava muito bem! Fazia coisas lindas com a linha e a agulha!
Sem parar! De longe, a menininha oferecia, de vez em quando, um pedacinho de
bolo, mas a vovó nunca aceitava...
Quando em vez, a vovó entrava pra fazer alguma
coisa, e a menininha olhava em volta e escolhia em qual árvore iria subir e arrancar
algumas frutas. Só descia quando ouvia a voz aflita gritando: “Desce! Vai cair
daí de cima!” “Maria pega a fruta pra você.” Descia. Mas não queria a fruta da
Maria. Parecia que, quando Maria apanhava a fruta, tudo perdia metade do sabor.
Bom mesmo era subir no pé e comer por lá. O gosto era outro. Mas a vovó nunca
ia entender...
E foi assim, numa dessas entradas, que subitamente
a menininha se lembrou dos filhotes. Levantou-se correndo e foi ao galinheiro. Do
lado de fora, não conseguia ver nada que a interessava. Aquele movimento lerdo
dos bichos, ela já conhecia. “Cadê os pintinhos?” Ficou na pontinha dos pés,
girou a tramela e entrou. Não podia fazer movimentos bruscos, porque as galinhas
fazem muito barulho quando ela está dentro do galinheiro. Não adianta pedir
silêncio. Bicho burro. Não entende o que ela fala...
No fundo do galinheiro, tinha uma casinha, muito
bonitinha, que ficava no alto sobre várias estacas, e também uma escadinha, que
ela adorava subir, pra retirar os ovos. Deve ser lá que as mamães escondem os
bebês. Subiu os degraus, sorrateiramente, e pôs a cabeça lá dentro. A-há!
Sabia! Encontrou! Vários pintinhos, que começaram a piar desafinadamente e a correr
de um lado para o outro. “Ai, meu Deus, a vovó vai escutar!... Mas não saio
daqui sem dar um beijinho nesses fofuras...” E a menina agarrou um pintinho e
desceu correndo.
Esperando por ela, embaixo, estava uma galinha
desesperada, tendo um surto psicótico. Começou a correr atrás da menina,
gritando, e provocou aquele alvoroço dentro do galinheiro.
Era melhor sair dali! Fugindo da confusão que tinha
criado, a menina passou pela porta do galinheiro em direção a sua cozinha improvisada.
No meio do caminho estava a vovó, vindo bravíssima, com aquela cara, que ela
bem conhecia. Desviou o caminho e deparou-se com seu forte apache: uma
jabuticabeira enorme, de onde podia ver todo o seu reino abaixo. Enfiou o
pintinho no bolso e disparou árvore acima, enquanto a vovó e Maria chamavam por
ela, em tom de poucos amigos.
Do alto, dos últimos galhos, a menina olhou pra
baixo e assustou-se com a confusão que se formara: galinhas e galos espalhados
por todo o quintal. Vovó e Maria cercando os animais, para tocá-los de volta ao
galinheiro. Desço daqui nunca mais!,
tomou a decisão. Tirou do bolso o pintinho, que ainda piava alto, aconchegou-o
junto ao coração, deu um beijinho fofo e ali ficou.
Nem se sabe quantas horas se passaram. O que se
sabe é que tudo tinha voltado ao normal. Animais no galinheiro. Maria dentro da
casa. Vovó e seu crochê, sentada na cadeira, na varanda do quintal, e a menina
ainda em cima da árvore. Só um detalhe lhe impedia de descer...
Quando a vovó se sentou novamente e pegou seu
passatempo de linha e agulha, fez o comunicado: “Estou esperando você descer”. Desço daqui nunca mais. Foi ratificada a
decisão.
Mas uma certa hora a mamãe chegou, e as duas
conversaram dentro de casa. Então, mamãe chamou: “Desce. Venha, precisamos ir
embora.” E a menininha desceu. O pintinho já estava tranquilo. Não piava mais.
Melhor deixá-lo dentro da gaiola do canário, porque não daria certo devolvê-lo
ao galinheiro. E pintinho e passarinho são bichos de asa mesmo!
Passou seríssima pela mãe, mas não foi até a vovó.
Do lado de fora da casa, debaixo da janela do
quarto dela, despediu-se: “Bença, vó. Eu volto amanhã.”
Querido leitor, assine seus comentários!
👏🏼👏🏼👏🏼👏🏼👏🏼Muito bom!!
ResponderExcluirAna, li e achei um barato.
ResponderExcluirRelato nostálgico de como não perder a coragem desbravadora e autêntica de uma criança.
"Esperando por ela, embaixo, estava uma galinha desesperada, tendo um surto psicótico."
ResponderExcluirExcelente!
Parabéns!
Que linda história!
ResponderExcluirRsrsrs.. Delícia de história... Saudações de quintal de vó... Glaura
ResponderExcluirQue delícia Ana Maria...lembrei de minha infância. Forte abraço
ResponderExcluirAdorei essa menina sapeca kk. Quando crescer quero escrever assim.
ResponderExcluirDelícia de texto, delícia de travessura. Desço dessa pureza infantil nunca mais...
ResponderExcluirSelma
Parabéns mãe eu amei sua crônica ficou muito legal tenho muito orgulho de você te amo eternamente ❤️❤️❤️
ResponderExcluirTe amo muito mãe ❤️♥️ y
Que leitura gostosa! Senti saudades das mangueiras do quintal a casa dos meus pais....de brincar de casinha...de comidinha....o galinheiro?! Na casa da vovó Maria de Pedro.Só lembranças deliciosas!!!! Gratidão, Ana!!! Parabéns cronista!!!!!Mônica Maria
ResponderExcluirCaríssima amiga de longas jornadas, parabéns pela beleza da escrita. . Que tenha as bênçãos da saúde e paz para nos dizer muito mais. Do amigo Rósnei Caetano
ResponderExcluirQue lindo, Ana!!!!! Amei! Não é sem motivo que te admiro, querida amiga!!! Por que demorou tanto pra iniciar nas letras? Não pare de escrever, por favor! Um abraço e... Saudações literárias!Professora Maria
ResponderExcluirHelena
Confesso que você me fez viajar no tempo! O seu texto tem luz, cor, cheiro e sabor que a vida citadina jamais vivenciou.
ResponderExcluirParabéns, Ana. Chique, comecei a ler e viajei no tempo. Que delícia! Essa é a função de uma bela história, conduzir o leitor através de um mundo imaginário, ou seja, através do tempo.
ResponderExcluirQue história deliciosa... achei que estava falando da minha infância.Bons tempos aqueles. Parabéns !
ResponderExcluirQuanta saudades senti da minha vovis ao ler seu texto, Ana! E concordo plenamente com seus dizeres "Quintal de vó é a coisa mais gostosa para uma criança"!
ResponderExcluirAbraços Edilaine
Amei!! Senti saudades da minhas férias na casa da minha avó e ela fazia todas as minhas vontades!!!
ResponderExcluir