"'Talento'", de Lucas Duarte Neves
Membro-fundador da Academia de Ciências e Letras de Sabará
Cadeira 4. Patrono: Antônio Pinto Júnior
"TALENTO"
Você já deve ter escutado alguém dizer: “ah... eu não tenho talento para música”, ou “eu não tenho talento para tocar instrumento musical...” Como professor de Música, já escutei isso algumas vezes, sendo que essa frase vem quase sempre acompanhada de um arrependimento ou frustração, sentimentos gerados provavelmente pela sensação de incompetência. Essa emoção negativa em relação ao fazer musical pode ser gerada por diversas razões, mas normalmente a razão principal é porque “alguém” fez tal pessoa acreditar que ela não era capaz de realizar a prática musical.
A ideia de incompetência para a Música pode ter raízes no preconceito, na ignorância sobre sua importância, e até na política cultural do país ou de uma comunidade. Tudo isso vai influenciar a maneira como as pessoas enxergam a prática musical. Do mesmo modo, toda essa composição de fatores contribuem para a construção da ideia de “talento”; então, por não ter “talento”, muitas pessoas deixam de fazer uma prática que é extremamente benéfica, pois auxilia, entre várias coisas, a propriocepção corporal, a melhora da autoestima e nos faz perceber que a evolução musical é fruto do próprio esforço, valorizando assim as suas conquistas diárias na prática musical.
Segundo um exemplo dado pelo professor José Márcio Galvão, coordenador do curso de cordas friccionadas do Instituto Baccareli, em São Paulo, se alguém te perguntar se você consegue pilotar um foguete da NASA, você vai responder que não. Mas essa negativa não se dá pela ideia de falta de talento para isso, mas pela falta de informação para realizar tal atividade. Você não é capaz porque ninguém te ensinou as pilotar. Parece óbvio, mas, quando alguém te pergunta se você consegue tocar um Violino, por exemplo, você responderá que não, mas frequentemente essa resposta é dada com a ideia de que o talento para isso não está presente em você.
O talento é visto como algo divino que é dado a poucos abastados e seu intelecto para tal atividade nunca poderá ser alcançado por outras pessoas “normais”. Isso é outro reflexo da nossa sociedade, que talvez, intuitivamente, recorre a algo superior para justificar uma falta de vontade para realizar algo. Isso reforça o ciclo negativo da “falta de talento” e tolhe as pessoas de fazer uma atividade que, além de ser prazerosa, é extremamente benéfica.
Como professor de Música, o que tento fazer é mudar a ideia de “talento” para um conceito de habilidade. Se formos ao dicionário, vamos descobrir, entre as definições, que habilidade é “fazer algo com facilidade”, “com destreza”. E, nesse ponto, precisamos pensar em “O que é preciso para fazer algo com facilidade?”. A resposta pode ser encontrada de várias formas, mas sugiro a vocês lembrar daquelas pessoas que cozinham bem, que fazem tricô com uma rapidez impressionante, que escrevem bem, que são bons matemáticos, que pintam belas paisagens ou retratos, que são bons pedreiros, que são bons músicos... todos são bons porque eles praticaram! Horas e horas sem fim, diariamente, sem parar. Até que aquilo que eles fazem se tornou fácil para eles, se tornou natural.
Quando vemos essas pessoas, costumamos pensar: “Nossa, que talento ela tem para isso”. Mas, na verdade, deveríamos pensar: “quanto esforço ela deve ter feito para conseguir realizar essa prática com tanta facilidade”. Parece menos romântico, mas isso nos faria desapegar de vez da ideia de que não podemos fazer uma determinada coisa porque o Divino não quis que tivéssemos talento para isso.
Não quero pregar aqui que todos a partir de hoje podem ser músicos profissionais — isso demanda uma dedicação e um tempo de que as pessoas podem não dispor. Entretanto, a prática musical não é restrita aos profissionais e, mesmo que seja em um âmbito amador (uso essa palavra no melhor sentido dela: aquele que ama o que faz), ainda assim a Música poderá auxiliar a pessoa em seus diversos aspectos psicológicos e físicos.
E, quando falamos que a prática musical não é restrita aos profissionais, precisamos falar sobre oportunidade e acesso à informação. É comum as pessoas não realizarem o desejo de tocar um instrumento ou de ter contato com a prática musical em geral por não terem tido a chance de aprender. Neste momento entramos novamente na questão das políticas cultural e educacional vigentes há muito tempo. A habilidade é a soma do conhecimento com a prática. Para que a habilidade apareça, é necessário prática, mas, para que a prática aconteça, é necessário que alguém capacitado a ensine.
Em 2008 foi aprovada uma lei que regulamentava a Música nas escolas como uma disciplina do currículo regular. Infelizmente essa lei nunca foi implementada efetivamente, sendo possível encontrar apenas ações esporádicas, seja de alguns municípios que realmente integraram a Música como disciplinas nas suas escolas municipais (cito, como exemplo aqui em Minas, as cidades de Capitólio, Sarzedo e Santa Bárbara) ou ações mais isoladas, como as de escolas particulares que oferecem aulas de Música da Educação Infantil até o Ensino Fundamental.
Essa lei poderia significar a oportunidade que muitos não têm de praticar a Música. E isso não é para formar mais músicos profissionais, apesar de poder ter esse efeito, mas sim para possibilitar às crianças serem estimuladas musicalmente e aproveitarem todos os benefícios cognitivos que a prática pode oferecer. Teríamos, no mínimo, indivíduos mais conscientes de suas capacidades e com melhor autoestima.
Apesar desse patamar político não favorável, existem ações que promovem o ensino musical gratuitamente: projetos sociais espalhados por todo o Brasil, além dos municípios que citei, e — mais especificamente aqui em Minas — as Bandas de Música, na maioria das vezes sem os apoios cultural e político necessários, são ações pontuais que diminuem um pouco essa lacuna do acesso às artes e principalmente à Música.
Não quero dizer, enfim, que não há pessoas que tenham uma pré-disposição para a música; há sim. Porém, mesmo essa facilidade que enxergamos em alguns indivíduos é fruto de algum estímulo inicial, ainda que não intencional, e que ficou enraizado na sua cognição. Desse modo, o que determina a evolução técnica é o estímulo que damos ao nosso corpo para uma determinada prática, independentemente do momento em que esse estímulo é iniciado. As ações de promoção do ensino de Música, portanto, devem ser apoiadas, não para termos mais músicos profissionais, mas para que mais pessoas sejam conscientes de suas capacidades e valorizem o esforço de cada um para realizar aquilo que se propõe.
Parafraseando o Pedagogo musical Shinichi Suzuki, o talento não é algo inato, é algo que pode ser educado. E os benefícios dessa educação só poderão ser vistos quando o ensino das artes deixar de ser algo pontual e esporádico e se tornar regulamentado, valorizado e acessível a todos.
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Que show de texto!!!! Que todos os governos tomem consciência de que as artes devem ser incentivadas, apoiadas e regulamentadas
ResponderExcluirpara que todos possam reconhecer seus "talentos"!
para que todos tenham acessos belos resultados
Parabéns,a cultura e a arte são a solução para um mundo melhor
ResponderExcluirQue bom este texto, Lucas! LidDesRecolhi em cada parágrafo momentos únicos de reflexivos ensinamentos didâticos pedágógicos que a mim muito impressioram pela lucidez. Idêias filósóficas de que somos um vir a ser, somos possibilidades em quaisquer circunstâncias. Parabéns!
ResponderExcluirLucas, como foi bom ler seu texto!... De forma amadora e sem argumentos justifiquei a vida toda minha frustração de não ter conseguido nada na música. Você me inquietou de uma maneira desconfortável. Creia ! ... Vou rever meus posicionamentos! Me reinventar! Buscar outro viés!... Adorei !
ResponderExcluirAdorei ler o seu texto! Sendo sua aluna, posso dizer que realmente o seu texto traduz a minha trajetoria na Banda. E preciso esforço e dedicação para desenvolver a habilidade musical. DARSONI
ResponderExcluirParabéns pelo artigo, Lucas. Muito esclarecedor, ao promover deslocamentos na nossa forma de perceber o que é o talento e de onde ele vem. E, sobretudo, seu texto é inspirador para quem hesita em dar os primeiros passos no universo da música ou de qualquer outra arte.
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