"Sobre anjos, ou Aos mestres", de Isabella Carvalho de Menezes

Membro-fundador da Academia de Ciências e Letras de Sabará
Cadeira 1. Patrono: Aníbal Machado


SOBRE ANJOS, OU AOS MESTRES


Outro dia me dei conta de quantas histórias de vida já me foram narradas, no contexto dos projetos de pesquisa que desenvolvo. Com efeito, é comum ao ofício dos historiadores a coleta e a interpretação de entrevistas com atores ou testemunhas de acontecimentos e conjunturas do passado e do presente. Considero realmente instigante descobrir o que nos revelam os narradores, que significados atribuem às suas experiências e quais as suas visões de mundo.

Um desses projetos é o Saberes & Sabores, realizado em parceria pelo Museu do Ouro (onde atuo), Museu da Gente Mineira e Tapera68. Desde o seu início, em julho de 2020, identificamos e convidamos pessoas que se tornaram referências na cidade de Sabará – por dominarem um saber específico ou se destacarem em algum ofício – para participar de uma entrevista, exibida em vídeo, sobre as suas histórias de vida. Acreditamos que esses relatos pessoais, na medida em que são representativos de valores e práticas da coletividade, contribuem para o registro das tradições culturais.

No dito projeto, é meu papel conduzir uma entrevista prévia, que será roteirizada para o dia da gravação do programa. Nesse exercício de escuta, comecei a observar a existência de um traço comum que marcava as trajetórias dos mestres e mestras, precisamente no momento em que eles consideravam ser um ponto de virada na vida. Para melhor ilustrar o sentido dessa percepção, selecionei algumas histórias, que passo a recontar, como fragmentos:

Marta capinava com o marido quando percebeu que alguém chamava na casa do vizinho. Como ninguém atendia, ela convidou a senhora, que se identificou como Yara, para entrar e aguardar. No meio da conversa, a visitante fortuita assuntou: “– O que você sabe fazer?”. Ao descobrir que Marta conhecia receitas de bolos e biscoitos, tratou com ela o fornecimento de quitandas para uma mostra que estava organizando e a incentivou a vender nas redondezas também. Em pouco tempo, Sabará ganhou uma das suas mais afamadas quitandeiras.

O escritor Luiz conta que tinha “complexo de burrice” na escola. Quem poderia imaginar? Tudo por causa da bendita matemática. Um dia, tomou aula particular com o professor Silvério e ele lhe pediu para resolver uma equação. Concluída a tarefa, o mestre lhe disse: “– Luiz, você aprende depressa!”. Mais que lição dos números, o discípulo recebeu a pitada de autoconfiança que faltava para seguir adiante nos estudos. E foi longe...

Edyl, certa feita, recebeu a visita de Vergílio em sua recém-montada oficina de marcenaria. Ele a aconselhou: “– Por que você não faz estojos para instrumentos musicais? Não temos bons fabricantes no Brasil”. Desafio aceito, o primeiro estojo teve como molde o violão do próprio Vergílio. Depois disso, outros dez mil estojos já foram fabricados na oficina de Sabará, para atender a encomendas recebidas de todo o país.

Joaquim começou a vida de borracheiro trabalhando em postos de gasolina. Porém, um dia o estabelecimento que o empregava fechou as portas. Marcos o acudiu no drama: “– Joaquim, para com isso de achar que borracharia só pode funcionar em posto de gasolina. Eu te arranjo um cantinho”. A nova borracharia foi então montada no lote oferecido, depois em outros, e lá se vão 50 anos de ofício.

Praça cheia, noite de serenata. Um imprevisto causou um desfalque no conjunto musical. Mauro, presente no local, não teve dúvidas: “– Miguel, precisamos da sua ajuda para tocar o sete cordas”. Espanto: “Eu?! Mas só toco seis cordas”. “– Sim, você.” Vencida a inesperada apresentação, no dia seguinte Miguel saiu decidido a comprar o violão de sete cordas que faria história nas noites seresteiras de Sabará. 

Num momento de dificuldade, Elza não tinha o que dar de comer ao filho. Dona Lourdes proveu o pão e a ideia: “– Por que você não começa a fazer bolinhos de feijão para vender?”. Comprou-lhe os ingredientes e até lhe repassou umas encomendas que tinha. Elza reuniu dois tijolos sobre o chão, lenha e frigideira, e encarou os bolinhos. Fez boa freguesia. Com o sucesso das vendas, estudou os filhos, comprou casa. 

E por aí continua, os exemplos são variados. Essas pessoas que compartilham conosco as suas narrativas às vezes não se dão conta do quanto elas nos ensinam. Os seus relatos nos permitem perceber que, num momento importante da vida, lá esteve alguém que, feito um anjo, assoprou uma boa ideia, acreditou, incentivou, agiu sem egoísmo. O talento, a capacidade, a habilidade, o ímpeto da execução, certamente, já pertenciam aos mestres; os anjos do caminho atuaram como catalisadores para a mudança de rumos.

As histórias de vida que ouvimos nos fazem relembrar de que, na realidade, todos nós somos instrumentos de uma força maior, cada um fazendo a sua parte. Os nossos mestres, sobretudo, nos convidam a refletir sobre quem foram os anjos que passaram pelas nossas vidas – ou se cremos na chance de um dia sermos anjos na história de alguém.




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Comentários

  1. Que maravilha Isabella! As paisagens humanas da alma se expõem no terreno suculento das experiências vivenciais.
    Uma relíquia de texto.
    Parabéns.

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  2. Que histórias! Sim, às vezes temos e outras somos anjos. Amei sua narrativa, Bela! 🥰

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  3. Realmente anjos estão o tempo todo zelando por nós. Vc, sem sombra nenhuma de duvida, é um anjo em minha vida!

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  4. Que texto lindo!! :)
    Olhando os relatos assim reunidos que a gente tem a dimensão do trabalho né!
    Estamos no caminho certo!
    Parabéns pelo olhar sensível!!

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  5. Bela narrativa. Com certeza, você também é um anjo na vida de várias pessoas. Parabéns ♥️!

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  6. Que riqueza! Um texto cheio de sensibilidade, de percepção apurada! 👏👏👏❤️💗

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  7. Que lindo relato! Muito rica e sensível a sua percepção sobre as trajetória narradas! 👏Darsoni

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  8. Isabella, lindo e sensivel olhar sobre o que tem sido a sua experiencia na escuta de narrativas de homens e mulheres que oferecem seus saberes, suas modas de fazer, de fazer sabores, musicas, poesias, presentes vários ofícios, revelando uma cidade invisível para muitos. Você captura os acasos, o fortuito que transformam vidas pra melhor. E diz o quanto tem aprendido com essa escuta. Lindo isso, lindo isso Isabella. Você é uma guardiã de historias.

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  9. Parabéns, Isabella, eu me identifiquei com sua proposta de projeto onde você valoriza e resgata com dignidade o trabalho e dedicação da comunidade sabarense.Gostei muito desses relatos.

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  10. Bela reflexão! Sempre que tocamos o coração e a mente de alguém com amor, somos anjos! Sempre que somos tocados com amor, são os anjos! Felizes aqueles que sabem acolher e inspirar com amor!

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  11. Parabéns Isabela! Sua escuta sincera capta as prosas das narrativas de vida e as desvela como versos poéticos. Cada um compondo seus versos na tessitura de suas existências.

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  12. Fico muito orgulhoso da minha amiga Isabela pela linda carreira que segue,ajudando a história do passado e a história do futuro ,lendo seu texto me vejo nela com a minha pequena história que você ainda acompanha de perto. Parabéns amiga do coração.

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  13. Parabéns Isabela Deus tiabençoi divino espírito santo e Lumine sempre sua vida você e um anjo de pessoa foi muito bom conhecer você muito obrigado 👏👏👏👏👏👏❤️

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  14. Comecei meu dia com a leitura desse texto lindo e cheio de lições de avanço... um anjo me enviou o link... Isabella, sua escrita é inspiradora, parabéns!

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  15. Querida Isabela, parabéns pelo texto e, principalmente, pela visão de Vida e leitura das pessoas ! Você é que é um anjo em nossa jornada! Bjos!
    Mônica Maria

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