CONTRIBUIÇÕES IMORTAIS: "Garçons são garçons só à noite", crônica de Ana Maria Guerra Machado

GARÇONS SÃO GARÇONS SÓ À NOITE

 
ANA MARIA GUERRA MACHADO
Membro-fundador da Academia de Ciências e Letras de Sabará
Cadeira 8. Patrono: Benedito Machado Homem

Sair à noite pra barzinhos sempre fez parte do meu cotidiano. Durante a faculdade de Comunicação, eu tinha uma turma definida, coesa, para esse tipo de movimento. Saíamos todos os fins de semana. Hoje, fico me perguntando de onde vinha o dinheiro. Embora me lembre de coisas incríveis, desse detalhe meu cérebro nem tem registro.

Uma das melhores memórias que tenho é que minha melhor amiga da sala adorava um garçom. Ninguém entendia esse fetiche, mas o fato é que, todas as vezes em que chegávamos ao bar, ela monitorava cada um deles e selecionava a vítima da noite. O flerte era até interessante… não demorava muito para o rapaz perceber que estava sendo seguido pelos olhos gulosos da morena, e da mesa, meticulosamente escolhida para angular todo o ambiente.

Éramos cinco amigos. Havia eu, que da vida só queria a felicidade. Havia o intelectual, que lia compulsivamente livros e jornais (naquela época, os jornais eram impressos, tinham o cheiro forte da tinta de impressão e deixavam nossas mãos pretas, porque a tinta soltava, mas só a tinta; seu cheiro gostoso não ficava nos nossos dedos.) Esse amigo assinava a Folha de S. Paulo, porque era esse o jornal que trazia o melhor caderno de cultura do país, e não era facilmente encontrado em bancas de jornais. Com ele, também aprendi a visitar os sebos de Belo Horizonte, e garimpar obras literárias inimagináveis! Esse era outro programa que adorávamos fazer, gastávamos praticamente metade do dia, percebendo o prazer em pegar nos livros e sentir a textura e o cheiro excêntrico daquele lugar, que nos remetia a outra dimensão – mas esse é tema para outra ocasião. Havia também o amigo cinéfilo, com olhar de galã, por quem eu era apaixonada. Fumava Malboro ou Luck Stike. Só andava de calça jeans e blusa de malha. Com ele, aprendi sobre filmes, atores, composição, luz, trilha sonora. Assisti aos clássicos. Maratonávamos os filmes que concorriam ao Oscar. Aprendi que a sala de cinema era um portal mágico para a imaginação e que, lá, todos os sentimentos eram permitidos. Tinha a amiga psicóloga, que eu nunca entendi. Delicada, sempre disposta ao “papo cabeça”, era a que tinha o corpo de modelo, a amiga que atraía todos os olhares por onde passávamos, mas parecia nem perceber. Aliás, estou pra afirmar que, realmente, ela não percebia! E, por último, aquela de quem eu mais gostava, a minha amiga rica, que tinha a gargalhada mais gostosa que eu conheci. Com carro do ano, roupas de marca, morava em duas casas, porque era filha de pais separados e cada um tinha um quarto pra ela. É dela que estamos falando.

Então… lá estávamos nós, em mais uma noite, em um novo bar, porque raramente repetíamos o local, dando risadas, falando alto e assistindo ao romance da noite. Mas, desta vez, o garçom escolhido era realmente um gato. A primeira coisa que fizemos foi perguntar o seu nome. E, a partir daí, acabou-lhe a paz: só o chamávamos pelo nome e o chamávamos toda hora. Era um moço discreto. Parecia mais novo que todos nós. Naquele uniforme noturno, cabelo muito liso e preto, penteado com gel, deixava surgir a covinha da bochecha quando chegava à nossa mesa. Inteligente, porque percebeu logo que estava sendo filmado. Entre uma cerveja e outra, minha amiga ganhou uma piscadela dele e tivemos a certeza de que a noite ia render… E rendia mesmo, porque romance com garçom só chega ao toque no final do expediente. Tínhamos a cansativa missão de permanecer até o fim da noite, até a alta madrugada, quando todos já não tinham mais assunto e partiam para suas casas (nem todos os cinco conseguiam ir até o final da missão). Geralmente, sobrávamos na última mesa ela, eu e o meu amigo cinéfilo, que eu não deixava ir embora, para não ficar sozinha.

E era sempre assim. A noite acabava, ela combinava com o párvulo que estaria lá fora esperando que fechasse o estabelecimento e ficávamos encostados no carro, até a hora em que fosse possível o encontro. Como eu sempre dormia na casa dela, passava pro carro do cinéfilo e, se não aguentássemos esperar na porta da casa dela, eu entrava, silenciosamente, pois era eu quem ficava com a chave. E assim foi.

Eu já estava deitada quando mais tarde ela chegou encantada, excitada, agitadíssima. Nossa, estava completamente apaixonada! Era um sentimento arrebatador. Não conseguiria dormir. Tinham marcado um encontro para o dia seguinte, no shopping, às 14h, porque ele trabalharia à noite. Já foi abrindo o guarda-roupa, para escolher o que iria vestir. Experimentou três ou quatro peças de roupa. O dia já estava amanhecendo e eu só queria dormir, mas ela nem pensava em se deitar. E falou do beijo, e repetiu várias vezes as dezenas de poucas palavras que trocaram, e queria investigar o perfume delicioso que ele estava usando, e procurava entre centenas de CDs em qual estava a música que tinha tocado quando estavam no carro e ele a beijou.

E o dia amanheceu. Lógico que nenhuma de nós dormiu. A casa foi acordando aos poucos. De dentro do quarto, eu ouvia a movimentação que vinha da cozinha. Eu já estava com fome. Não dormi, então queria comer. Consegui fazer com que ela fosse tomar banho. Enquanto isso, eu me troquei e corri pra cozinha. Sabia que perto da mãe ela controlaria aquele arrebatamento amoroso. E assim aconteceu. Ela chegou e, dentro da vida real, voltou ao normal.

Mas a loucura reiniciou na hora do almoço, porque ela não podia chegar atrasada. Liguei pro meu amigo cinéfilo, para irmos também. Eu não queria perder essa cena. Era a primeira vez que ela se encontraria com um de seus garçons fora do cenário costumeiro. Ela trocou de roupa umas mil vezes, consumiu-se na dúvida do perfume perfeito, mas, como o relógio não para, finalmente estávamos todos prontos.

No shopping, na praça da alimentação, nosso amigo cinéfilo nos esperava, mas ela se sentou do outro lado, sozinha em uma mesa, olhando ansiosamente o relógio. Não demorou a volta do ponteiro, o moço chegou.

Alguma coisa aconteceu, e não sabíamos o que era, porque de onde estávamos só podíamos assistir, mas nada escutar. O cinema foi trocado pelo chope. Estavam tomando chope! Chegou a porção de batata com provolone. Sabíamos que alguma coisa estava errada, ela ciscava as batatas, procurando alguma coisa, ou somente esperando o tempo passar... Víamos sorrisos sem graça, nem a metade dos músculos se movia em seu rosto.

Pouco mais de uma hora depois — foi o tempo que demorou —, eles se despediram com três beijinhos: no rosto. No rosto? O rapazinho se afastou, com a mochila nas costas, e assistimos à cena, até que ele desceu pela escada rolante.

Ela caminhou até nossa mesa, deu uma golada na minha Coca e, como se nada tivesse acontecido... “Vamos na Metrópole. Preciso comprar uma calça black jeans”. E quem sou eu pra contrariá-la, né? No caminho até a loja, não me segurei: precisava pelo menos de um consolo para minha curiosidade. “Quer falar sobre o que aconteceu?” “Não. Garçons são garçons só à noite.” Tudo bem. Eu é que não iria discutir. Prefiro as calças jeans da Vide Bula.


Comentários

  1. Uau! Que narrativa deliciosa,querida!!!!Parabéns!
    Amei!!!! Pode começar a compilação para um livro, viu?!

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  2. Excelente! Amei!
    Li como se estivesse ali!
    Parabéns! Já quero o livro!

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  3. Essa é a Ana que eu conheço! Na agitação costumeira huarda na memória do coração o sabor das vivências cotidianas. Parabéns. Abração.

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  4. Ana, eu adorei sua crônica. Você colocou em jogo algo corriqueiro e o transformou em literatura de alta qualidade.

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  5. Ana, estava ouvindo você e não lendo, até ouvi sua gargalhada. Que viagem!Ameiiiiiii

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  6. Meu Deus! Metrópole e vife bula! Kkkkk
    Preferia Triton, Fórum e Zoomp, más, TUDO bem! Gosto não se desgute! MUITO menos o de fetiche por garçons! Kkkkkk MUITO bom! Parabéns amiga!

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  7. Aninha... Você, hein??? Adorei sua crônica. Acho que deveria dar um jeito de priorisar este dom e nos brindar com mais textos. Muito bom. Parabéns!

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  8. Muito bom o texto. Leveza no ponto certo! Parabéns!

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  9. Adorei Ana! Mais um de seus múltiplos dons!!! Muito feliz em saber!! Parabéns!!! Queremos mais....

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  10. Parabenss Ana!!! São muitas historias pela vida!! Vale a pena relembrá- las sempre!!!!

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  11. Parabéns Ana, excelente, continue a nós brindar com outros!!!

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  12. Parabéns, maravilhosaaa!
    Você sempre surpreendendo a todos.
    Amooo você Aninha...
    Ps: policiaaa

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  13. Que delícia de crônica! Texto leve, agradável e com uma descrição de detalhes riquíssima. Maravilhoso!

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  14. Kkkkkkkkk
    Muito Bom , viajei no tempo aqui.
    Amo de paixão essa Ana.

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  15. Parabéns Ana! Delicia de crônica! Me remete á Stanislaw Ponte Preta, Mario Prata e Luís Fernando Veríssimo! Minha vista passeava enquanto minha mente viajava em sua narrativa! Enfim minha feliz adolescência acorda!Sua crônica é um prelúdio de uma futura cavalgada coletâneas! Um grande abraço do seu ex vizinho e agora eterno admirador..Geraldo Jurema!

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  16. Aninhaaaaaa, que brilhante! Realmente:a noite não os gatos são os pardos... Os pardos todos é que são gatos! Continue nos brindando com essas deliciosas reflexões em forma de crônicas! Você é luz!

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  17. Adorei Ana Maria!!! Sua crônica é quase um conto de tão rica!!!
    Parabéns!!

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  18. Parabéns Ana Maria! Excelente texto, que venham outros.

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  19. Parabéns, Ana. Adorei. Estou lendo e enxergando as cenas. Uma leitura deliciosa de se fazer. Sucesso🤩🤩🤩

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  20. Ana Maria!... Adorei! Pensei em outras paixões e senti suas gargalhadas e suas intervenções. Gosto de quero mais!

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  21. Amei seu texto, Ana!!! Não é à toa que sou apaixonado por vc! Vc é brilhante!
    Fiquei muito curioso pra saber o final da história; a cada linha ficava fazendo suposições. No último parágrafo pensei: "Não é possível, meu Jesus, que com uma linha só essa história vai fechar. Terá uma continuação".
    E, no final, não me aguentei de rir! Realmente, a questão aqui não é sobre um romance, mas sim sobre um fetiche. Lógico "garçons só são garçons à noite... 😄
    Continue escrevendo... Faz bem pra você, e, com certeza, para nós também. Bjos 😘

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  22. Detalhe: fui lendo e ouvindo sua voz, você me contando a história... Impossível não ouvir sua própria gargalhada no final. 😄😄😄

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  23. Ana Guerra... rsrs!
    Adorei. Simplesmente a vida em si. Show!
    Forte abraço!!!

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  24. Kkkkk. Texto incrível, muito gostoso de ler! Ri muito.

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