CONTRIBUIÇÕES IMORTAIS: "Exame de voz", crônica de Alzira Umbelino
EXAME DE VOZ
ALZIRA UMBELINO
Membro-fundador da Academia de
Ciências e Letras de Sabará
Cadeira 7. Patrono: Avelino Fóscolo
Tomou um táxi no pé da avenida.
― Por favor,
moço, já são três e dez. Preciso chegar ao Mangabeiras às três e meia. Com este
trânsito horroroso, corro o risco de adiar, mais uma vez, a minha
vídeo-laringoscopia.
― Vídeo... o
quê?! — indagou um vozeirão.
― É uma avaliação
médica das cordas vocais, um exame muito chato, de voz...
― Ah, sim! A
senhora é cantora? — interrompeu o taxista.
― Não! Leciono há
mais de vinte anos. Faço um tratamento para eliminar calos nas cordas vocais.
― É... voz é um
dom precioso — afirmava ele. — A senhora não sabe... mas eu canto...
― Ah, o timbre de
sua voz lembra-me o de seresteiro! — ela interrompeu.
― Isso mesmo! –
confirmou vivamente o motorista. E diante de um sinal vermelho, virou-se para
trás e completou: — Sabe, fiz poucas coisas na vida, professora. Aos dez anos
já jogava futebol. Aos quinze, fazia serenata para conquistar a namorada, que é
a minha esposa até hoje. Só que jogar bola e cantar no interior não valem como
profissões. Eu tinha de ganhar a vida. Escolhi ser motorista.
― E o senhor
gosta deste trabalho? — ela quis saber.
― Ah, estou
satisfeito, né?! Graças a Deus, em trinta e cinco anos de serviço, nunca tive
problema sério, nunca atropelei ninguém. E sempre sobra um tempinho para cantar
em casamentos, bodas de prata... “Tu és,
divina e graciosa, estátua majestosa...” — ele puxou. — “... do amor, por Deus esculturada...” — Ela
tentava acompanhar em um fio de voz... e exaltava:
— Rosa, de Pixinguinha! Como meu pai
gostava dessa música!
― A senhora tem
bom gosto — ele elogiou, todo senhor de si. — Gosto muito do Sílvio Caldas, do
Orlando Silva e outros da época em que o rádio fazia sucesso. Um repertório e
tanto! Música de sentimento mesmo. Tem de abrir o coração pra cantar, senhora
entende, né?!
― Claro, claro,
sou filha de seresteiro! — ela respondeu, entusiasmada. E continuou: — Como o
senhor conserva sua voz limpa, assim?
― Olha,
professora, não tem segredo, não. Geralmente, mastigo gengibre para limpar a
garganta. Não fumo e só bebo de vez em quando... deve ser por isso. Também já
não canto direto em bailes, como fazia na juventude. Agora, só em ocasiões
muito especiais. Não posso é ficar sem cantar!
― Isso é muito
bom! — ela concordou e quis saber se ele ficava ansioso antes de uma
apresentação.
― Sempre faço um
teste com a Ave Maria — anunciou ele,
assim que outro sinal fechou, satisfeito com o interesse da ouvinte. E
prosseguiu: — Dou uma amaciada na garganta, vou modulando os tons graves e as
notas mais altas. Aí, se vem um estremecimento, uma ponta de alegria, é porque
tudo está bem!
E para surpresa
da passageira, ele respirou fundo e anunciou, em tom de apresentador: — Para a
senhora, a mais linda saudação à mãe de Jesus! — E a voz nítida, bem impostada começou
a atravessar a avenida, entoando a Ave
Maria de Gounod. Alguns motoristas
e passageiros observavam, sorrindo em sinal de aprovação.
Um breve silêncio
entre os dois revelava a emoção que um evento inusitado desse pode causar.
Já perto do
destino da passageira, ele quis saber:
― Seu pai já deve
ter cantado Ciclone. Sempre me pedem
para cantar aquela beleza do Nelson Gonçalves! Claro que beleza maior são as
Ave Marias... E, olhe, chegamos, mestra! — disse o músico, interrompendo suas lembranças.
― Já?! — perguntou
ela, voltando de sua distração —, nem percebi!
Fiquei encantada com essa Ave
Maria em sua voz. É como se ainda estivesse ouvindo... E qual é o nome do
senhor? — quis saber enquanto separava o dinheiro para pagar a corrida.
― José,
professora, José Alírio, às suas ordens! Gostei muito de conduzir a senhora!
São três e vinte, viu? O trânsito até
que não complicou muito.
― Até uma próxima
oportunidade, Senhor José! — ela se despedia, agradecida, e acrescentou: — José
é também o nome do meu pai! Ele adorava uma seresta! Que boa lembrança, meu
Deus! Muito obrigada!
Já arrancando o
carro, ele concluiu: — Boa sorte, no exame! Deus proteja a sua voz!
No consultório, o
médico, bem-humorado: — Animada, hoje? Além da vídeo, vamos fazer um exame
complementar, a Estroboscopia...
Absorta, com o
olhar longe, a paciente ia tentando cair na real: — ... mas, hoje, depois de
uma Ave Maria...
― O quê?! – admira-se
ele, em tom bem alto.
― Que susto! —
aturdida, ela exclamou, sem graça! ― Desculpe-me! — E continuava... — Doutor, imagine
um taxista que canta, enquanto conduz o passageiro! É o que eu encontrei ao vir
para cá... Dá para acreditar?
― Não! — ele
respondeu, categórico. E prossegue, tentando disfarçar o riso: — Conheço muito
bem é a sua indisposição em relação aos exames, minha cara! Por favor, relaxe e
língua para fora!!!
Alzira Umbelino –
Premiação na categoria Crônicas – Concurso Literário SINPRO- MG- Ano 2000.
Publicado na Antologia 5ª edição do Concurso de Crônicas/Contos e Poesias-
páginas 15 e 16.
Ano 2000.
~
Que história inspiradora! ❤️ Abraços, Glaura
ResponderExcluirQue delícia de texto,cheguei a visualizar cada cena e ouvir o taxista-cantor!!!! Parabéns e obrigada por nos deleitar com sua sensibilidade,amiga Zizi!!!Bjos!
ResponderExcluirPS: Mônica Maria
ResponderExcluirMinha mana poeta, cronista, contista! Minha inspiração para a literatura.Despertou em mim a paixão pela arte da palavra. Sinto muito orgulho de você. Abraços. Edinha
ResponderExcluirQue espetáculo! Adorável. Abraços. Maria do Carmo
ResponderExcluirEsses inusitados momentos da vida, contados com esse faceirismo, com essa pureza literária tão peculiar a todos os seus textos, sustentam, e todos nòs , o amor pela leitura. Silas Fonseca
ResponderExcluir