CONTRIBUIÇÕES IMORTAIS: "Negrescência", artigo de José Arcanjo do Couto Bouzas
NEGRESCÊNCIA
JOSÉ ARCANJO DO COUTO BOUZAS
Membro-fundador da Academia de Ciências
e Letras de Sabará
Cadeira 6. Patrono: Arthur Lobo
O
trabalho abaixo que se segue, apresentado com textos que, aparentemente, não têm
nada a ver um com outro, com diferenças
no conteúdo, mas iguais no tema central, é, antes de tudo, uma tentativa de
fazer refletir sobre acontecimentos e ações, dentro de suas épocas e
temporalidades, acerca da luta, quase que eterna, contra a escravidão — raiz
dos males sofridos por uma raça tratada como um animal irracional, torturada
sem piedade, objeto de um verdadeiro genocídio —, que se transformou numa
mancha vergonhosa para a história do Brasil. E também ajuda a pensarmos o
quanto ainda se sofre com as consequências destes atos, perpetrados contra uma
raça de homens e mulheres, seres humanos.
Quase
trezentos anos depois, já no século XIX, um grande personagem da nossa Literatura,
o poeta Castro Alves, descrevia, protestava e denunciava este estado de coisas,
o horror da travessia dos navios tumbeiros, a tristeza da separação dos membros
das famílias africanas escravizadas, a fome, a desgraça, e a morte.
O NAVIO
NEGREIRO
Um dos
mais conhecidos poemas da Literatura brasileira, “O Navio Negreiro – Tragédia
no Mar”, foi concluído pelo poeta em São Paulo, em 1868. Quase vinte anos
depois, portanto, da promulgação da Lei Eusébio de Queirós, que proibiu o
tráfico de escravos, de 4 de setembro de 1850. A proibição, no entanto, não
vingou de todo, o que levou Castro Alves a se empenhar na denúncia da miséria a
que eram submetidos os africanos na cruel travessia oceânica. É preciso lembrar
que, em média, menos da metade dos escravos embarcados nos navios negreiros
completavam a viagem com vida. Composto em seis partes, o poema alterna
métricas variadas para obter o efeito rítmico mais adequado a cada situação
retratada. Assim, inicia-se com versos decassílabos que representam, de forma
claramente condoreira, a imensidão do mar e seu reflexo na vastidão dos céus:
“'Stamos em pleno mar... Doudo no espaço
Brinca o luar - dourada borboleta;
E as vagas após ele correm... cansam
Como turba de infantes inquieta.
'Stamos
em pleno mar... Do firmamento
Os astros saltam como espumas de ouro...
O mar em troca acende as ardentias,
- Constelações do líquido tesouro...
'Stamos
em pleno mar... Dois infinitos
Ali se estreitam num abraço insano,
Azuis, dourados, plácidos, sublimes...
Qual dos dous é o céu? qual o oceano?...
'Stamos
em pleno mar. . . Abrindo as velas
Ao quente arfar das virações marinhas,
Veleiro brigue corre à flor dos mares,
Como roçam na vaga as andorinhas...”
Note o leitor que o poema se inicia com a supressão da vogal ee inicial da palavra Estamos, grafada ‘Stamos para que o poeta forme um verso decassílabo. É um recurso
tipicamente romântico: a expressão suplanta o cuidado formal.
Na segunda parte do poema, composta em versos redondilhos
maiores (heptassílabos), ao seguir o navio misterioso, pedindo emprestadas as
asas do albatroz, o eu lírico escuta as canções vindas do mar. Ao se aproximar,
na terceira parte, em versos alexandrinos, o eu lírico se horroriza com a “cena
infame e vil”, descrita na quarta parte do poema, através de versos
heterossílabos, alternando decassílabos e hexassílabos:
“Era um
sonho dantesco... o tombadilho
Que das luzernas avermelha o brilho.
Em sangue a se banhar.
Tinir de ferros... estalar de açoite...
Legiões de homens negros como a noite,
Horrendos a dançar...
Negras
mulheres, suspendendo às tetas
Magras crianças, cujas bocas pretas
Rega o sangue das mães:
Outras moças, mas nuas e espantadas,
No turbilhão de espectros arrastadas,
Em ânsia e mágoa vãs!
E ri-se a
orquestra irônica, estridente...
E da ronda fantástica a serpente
Faz doudas espirais ...
Se o velho arqueja, se no chão resvala,
Ouvem-se gritos... o chicote estala.
E voam mais e mais...
Presa nos
elos de uma só cadeia,
A multidão faminta cambaleia,
E chora e dança ali!
Um de raiva delira, outro enlouquece,
Outro, que martírios embrutece,
Cantando, geme e ri!”
Na quinta parte, novamente em heptassílabos, o poeta faz um
retrocesso temporal, descrevendo a vida livre dos africanos em sua terra. Cria,
assim, um contraponto dramático com a situação dos escravos no navio. Na última
estrofe Castro Alves retoma os decassílabos do início para protestar com
veemência contra a crueldade do tráfico de escravos:
“Existe
um povo que a bandeira empresta
P'ra cobrir tanta infâmia e cobardia!...
E deixa-a transformar-se nessa festa
Em manto impuro de bacante fria!...
Meu Deus! meu Deus! mas que bandeira é esta,
Que impudente na gávea tripudia?
Silêncio.
Musa... chora, e chora tanto
Que o pavilhão se lave no teu pranto!...
Auriverde pendão de minha terra,
Que a brisa do Brasil beija e balança,
Estandarte que a luz do sol encerra
E as promessas divinas da esperança...
Tu que,
da liberdade após a guerra,
Foste hasteado dos heróis na lança
Antes te houvessem roto na batalha,
Que servires a um povo de mortalha!...
Fatalidade
atroz que a mente esmaga!
Extingue nesta hora o brigue imundo
O trilho que Colombo abriu nas vagas,
Como um íris no pélago profundo!
Mas é
infâmia demais! ... Da etérea plaga
Levantai-vos, heróis do Novo Mundo!
Andrada! arranca esse pendão dos ares!
Colombo! fecha a porta dos teus mares!”
ZUMBI
Há 59 anos, um grupo de jovens,
amigos e idealistas, criou uma Companhia de Teatro, o Grupo de Teatro do Conselho de Arte de Sabará
– CAS, hoje denominado Grupo de Teatro
Cena Aberta. O grupo sempre teve a
atenção ao escolher as peças para a montagem de seus espetáculos com cuidado,
levando em consideração, primeiramente, a qualidade dos textos, os temas
atualizados e a facilidade da comunicação direta com o público, além de estarem
de acordo com nossas ideias sobre o mundo. Depois de quatro ótimas montagens,
com bastante sucesso, arriscadamente, foi escolhido para ser apresentado um
texto que já havia sido montado pelo Grupo de Teatro Arena do Rio de Janeiro,
com o título “Arena Conta Zumbi”, escrito por dois grandes artistas,
Gianfrancesco Guarnieri e Augusto Boal, com música do cantor, compositor e
arranjador Edu Lobo. Era o ano de 1975. O mundo fervilhava de protestos
estudantis, e o governo militar controlava o país com mão de ferro, através do
terrível AI5. — Ato Institucional nº. 5. Havia uma forte censura,
principalmente às produções artísticas e culturais. O musical conta as agruras, a violência, os
horrores e as perseguições sofridas pelos quilombolas, liderados por Zumbi, no
Quilombo dos Palmares, nas Alagoas. Mostra também as vitórias dos negros sobre
seus perseguidores, e como seria a maneira de viver o dia a dia, naquele distante
e isolado povoado, cujos habitantes eram escravos fugidos dos senhores, homens,
mulheres e crianças, recém-chegados dos confins da África, nos navios
negreiros, chamados de “tumbeiros”, por causa da triste função de ser quase uma
tumba funerária. Havia também pretos forros e outros segmentos da população
negra, que aderiram aos quilombos. O grupo de Teatro do CAS, na montagem da
peça, a chamou de “Zumbi dos Palmares”.
Esta introdução se agrega ao
restante do texto e procura contribuir, um pouco que seja, para uma melhor
compreensão do assunto, voltado para a memória e a herança deixadas por Zumbi,
esta lendária figura da história do Brasil, e a sua luta pela liberdade. Esta
luta, que é contínua, é reforçada em nosso país, nos últimos anos, em novembro,
mês da Consciência Negra, apesar de forte oposição de quem pensa o contrário.
Veja abaixo, em itálico, alguns trechos:
“Se desagradasse ao branco. / Tronco.
Pescoço, pés e mãos imobilizados entre dois grandes pedaços de madeira.
Se
houvesse ofensa mais grave / Viramundo. Pequeno instrumento de ferro que
prendia pés e mãos do escravo forçando-o à uma posição incomoda durante vários
dias.
Se
fugisse. / Limbabo. Argola de ferro em
volta do pescoço do negro com uma haste terminada por um chocalho.
Se
furtasse. / Prendiam-lhe na cara máscara de folha de flandres fechada por
cadeado e penduravam-lhe nas costas uma placa de ferro com os seguintes
dizeres: LADRÃO ou LADRÃO E FUJÃO.
E
foi através desses e outros instrumentos engenhosos que se persuadiu o negro a
colaborar na criação das riquezas do Brasil.”
“Primeiro
o ferro marca a violência nas costas / Depois o ferro alisa a vergonha nos
cabelos / Na verdade o que se precisa é jogar o ferro fora / é quebrar todos os
elos dessa corrente de desesperos.”
“E
a sorte foi lançada, o massacre ordenado / Ganga Zumba procurava ter seu povo
animado, mil e uma emboscadas /
Escaramuças se travava / Ganga Zumba com bravura comandava pessoalmente.
Zambi
preferiu a morte para Ganga Zumba (seu filho) ter poder / Ganga Zumba filho
das selvas, filho de Zambi, tem a espada de fogo nas mãos. Ganga Zumba é Zumbi,
o feitor de Olorum, chefe da vingança e da valentia. Nossum reis é Zumbi.”
Continuando na triste saga dos
pretos africanos, ainda no século XIX, quase no alvorecer da escravidão, com a
publicação da Lei Áurea, pela filha do Imperador Pedro II, Dona Isabel, um
outro personagem, agora mineiro, nascido em Diamantina, morador em Sabará desde
a tenra idade, nos fornece uma visão da situação escravista no Brasil. E nos
mostra isto através de seus atos, ele que era um Abolicionista empedernido,
além de Republicano ferrenho. Terminando essa descrição de uma saga escravista
e vergonhosa, na última nação das Américas a manter ainda um regime escravista,
já entrando pelo século XX, vejamos como foi o último combate, descrito nesta
narração, pela liberdade dos escravos.
O RÁBULA ABOLICIONISTA
O que vem a ser exatamente um
rábula?
O Dicionário Brasileiro da Língua
Portuguesa, de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, diz que é aquele “que advoga sem ser diplomado”, ou “homem muito falador que não chega a
conclusão de seu arrazoado”. No caso do “Doutor” Bento Epaminondas, as duas
definições se aplicam, alterando-se o final, pois se tratava de uma figura
ímpar na capacidade de debater, argumentar, discutir e criar situações, às
vezes inusitadas e surpreendentes para o opositor, com conclusões quase sempre
a seu favor.
Bento Epaminondas nasceu no
antigo Arraial do Tejuco, hoje Diamantina, em meados século XIX, chegando em
Sabará ainda jovem. Viveu com Carolina, mulher sovina, apelidada Calú, na rua
do Carmo, onde criaram várias pessoas pobres, como Miguel do “Carmo”, que veio a
se tornar bacharel em Direito; Sara, batizada pela família sabarense dos Paula
Rocha; Sanica, que diziam ser, na verdade, filha deles, professora casada com
um inglês que vivia na cidade, de nome John; a jovem Modesta; e André, um
moleque preto.
Bento lia muito para se preparar
para seus estudos. Viajava constantemente para a nova capital, Cidade de Minas,
futura Belo Horizonte, de trem, logo no início da chegada do ramal ferroviário
Santa Bárbara, em 1895, levando uma vela para ler à noite ou ainda pela
madrugada escura. Quando o “chefe” do trem se aproximava para picotar a
passagem, ele apagava imediatamente a vela.
Como um homem dotado de “douto”
conhecimento, de rara inteligência, sabedoria popular sem deixar de ser
erudito, um radical nas suas posições políticas e sociais, se envolveu, inevitavelmente,
em movimentos sociais, políticos, culturais e religiosos. Mas o que mais chamou
a atenção sobre si foram suas atividades como advogado dos pobres e oprimidos,
suas defesas para a libertação dos escravos e a implantação da República no
Brasil. Advogava, escrevia, poetava e promovia espetáculos variados, sempre para
angariar fundos para suas causas. E sempre atuando de forma radical e polêmica.
A Casa da Ópera não poderia
deixar de ser, na velha cidade de Sabará, naquele conturbado período de nossa
história, ao final do século XIX e à chegada do novo século, o cenário ideal
para as diversas manifestações, voltadas para uma nova ordem cultural, social e
política no Brasil. Foi aquela nobre casa o local onde os sabarenses puderam
mostrar a sua pujante força contestatória e a consciente posição política. Os
camarotes e a plateia eram tomados por exaltados abolicionistas e escravistas,
que não perdiam a oportunidade de discutir, acaloradamente, suas posições
políticas, muitas vezes até durante os espetáculos promovidos para levantar fundos
necessários à alforria dos escravos.
Em 1879,
numa dessas memoráveis noitadas lítero-musicais no Teatro — talvez com a
Orquestra Santa Cecilia ou a sua rival Orquestra São José, ilustrando o
trabalho dos atores, poetas ou cantores — em benefício da libertação de três
escravos, aconteceu um fato que ilustra
bem os ânimos exaltados do povo, àquela época. No encerramento do espetáculo, o
polêmico Epaminondas, que era um dos promotores do evento, assentado ainda no primeiro
camarote, foi abordado grosseiramente, segundo ele, por Mister William, um
inglês diretor da Cia. de Mineração Cocais, de extração de ouro, contestando
algumas medidas tomadas pelo rábula, a respeito do tema abolicionista em Sabará,
que poderia provocar a derrocada da empresa. Bento, que já gostava de uma boa
discussão, viu no episódio uma oportunidade para contra atacar, finalmente,
aquele “gringo” prepotente, na visão dele, explorador do Brasil, monarquista e
antiabolicionista. A discussão acabou envolvendo outras pessoas presentes,
levando o advogado prático a mover um providencial processo por calúnia e
injúria, contra o inglês. Na mesma ocasião, o esperto rábula sabarense aproveitou
para professar, em voz alta, interessante e oportunista discurso sobre a
abolição da escravatura. O processo correu rápido e foi favorável ao
abolicionista sabarense, levando o então apavorado Mister William a apelar para
o Cônsul no Rio de Janeiro. Este conseguiu o relaxamento da pena (o inglês
deveria cumprir pena de prisão), evitando o vexame de um súdito da orgulhosa
potência britânica ser encarcerado, e impedindo o que poderia vir a ser o
estopim de mais uma grave crise nas relações entre o Império do Brasil e o da Inglaterra, provocada por uma
antiga cidade aurifica mineira. A causa, era de se esperar, empolgou a multidão,
e o processo libertador escravista teve grande impulso, com reuniões públicas,
propagandas em todas as formas de comunicação possíveis à época, a realização
de novos espetáculos teatrais, jantares, quermesses e até missas, tudo voltado
para o sucesso do movimento abolicionista em Sabará.
Após terminado
o processo – oficial — da abolição e
quatro anos depois da Proclamação da República, alguns saudosistas, conhecidos
como “os restauradores”, passaram a propagar pela imprensa simpatizante o
retorno do Império Brasileiro para, na visão deles, acabar com a “anarquia” e o
“horror” republicano que se espalhava pelo país, como diziam os seguidores do
famoso Antônio Conselheiro. Entra em cena, então, nosso animado rábula
Epaminondas, que, como quase todo abolicionista, era também ferrenho
republicano. Alegando que um jornal “restaurador”, que atuava em Sabará, além
de pregar o retorno da monarquia, também ofendia com seus artigos agressivos a
honra e a reputação das senhoras e “moçoilas” sabarenses, conseguiu, com um
discurso inflamado, convencer e agrupar mais ou menos cento e cinquenta cidadãos
revoltados com a situação, partindo do Largo do Rosário e pelo do São
Francisco, onde conseguiu mais umas cinquenta pessoas. Dirigiram-se à rua do
Kaquende, armados de paus, porretes e alguns até com enferrujados fuzis. Desceram
a rua São Pedro e chegaram ao chafariz. O povo, armado, invadiu o local onde
funcionava a gráfica, quebrando e atirando. A porta de uma casa vizinha foi
atingida. Os papéis, jornais, impressora, equipamentos e outros objetos foram
espalhados na rua, “empastelando”, como se diz, a gráfica monarquista.
O
pranteado e intrépido rábula sabarense, com suas histórias e sua vida agitada,
daria para encher várias páginas de um livro. Sua biografia, além de política e
jurídica, foi recheada também com a participação na conturbada diretoria da
Irmandade da Santa Casa da Misericórdia, na Mesa Administrativa da Ordem
Terceira do Carmo, e na sua passagem por diversas irmandades religiosas de
Sabará e outras entidades e movimentos sociais. Mas vale lembrar e afirmar, com
toda a tranquilidade, que o Rábula Sabarense, Bento Epaminondas, contribuiu
sobremaneira para o movimento abolicionista em nossa cidade.
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Saudações sempre Prof. Bouzas! Fantástica tecitura de negrecências a se entrelaçarem! Grata por esse farto caminho! Abraços!
ResponderExcluirParabéns, Zezinho! Suas palavras e sua mestria na organização textual sempre nos brindam com imensa cultura! Forte abraço, Glaura.
ResponderExcluirDigo, maestria
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