CONTRIBUIÇÕES IMORTAIS: "O almofariz", ensaio de Isabella Carvalho de Menezes
O ALMOFARIZ
Ensaio sobre signo no museu
Na Casa de Fundição de Sabará, órgão do
fisco português, havia um almofariz de bronze, fabricado no ano de 1771. O
recipiente, espécie de pilão manual, era utilizado para a trituração de
minérios auríferos. Esse almofariz era um instrumento de produção como outro
qualquer, ele não possuía um sentido preciso, apenas desempenhava a sua função
na rotina de trabalho da Casa, sem representar qualquer outra coisa. Enquanto tal, esse instrumento não se converteu em signo.
Em meados
do século XX, o prédio da Casa de Fundição foi transformado em museu, e o velho
almofariz passou a integrar o acervo. O instrumento já não desempenhava o seu
papel na produção, sendo investido de uma nova função: tornou-se um bem
cultural. Resíduo material de um passado distante e fragmentado, ancoragem da
memória, o almofariz converteu-se em aura simbólica, objeto representativo,
signo.
Mas basta
estar exposto no museu, para que o objeto tenha um significado? Em Bakhtin,
encontramos a ideia de que o significado é uma impossibilidade teórica. Para o
filósofo, um signo não possui um significado, mas receberá tantas significações
quantas forem as situações em que venha a ser usado pelos sujeitos sociais,
historicamente localizados. Decerto o almofariz passou por um processo de
atribuição de sentidos ao ser inserido num esquema de musealização. No entanto,
os visitantes compõem interpretações impregnadas de suas visões de mundo,
vivências afetivas e predisposições culturais, o que pode se insinuar à inteira
revelia do discurso do museu.
Dona
Diolinda, uma visitante, se deteve diante do almofariz e tratou de significá-lo
do seu jeito. Nada de tributação aurífera. O objeto trouxe-lhe a imagem da avó,
que costumava preparar alimentos manuseando um pilão de madeira. A senhora,
então, recordou as práticas culinárias do seu tempo de roça, elaborando
diferenciações em relação às “modernidades” dos dias atuais. Tudo se deu a
partir de um processo de significação íntima, amparado na memória.
Ou seja, por
mais que exista, no presente, um trabalho intencional e consciente de
representação do passado, como parte de uma tentativa de racionalidade, apoiada
em signos, os processos de significação, operados pelos sujeitos sociais, abrem
espaço para contínuas interações, construções e reconstruções da realidade. Talvez
seja justamente na dimensão fortuita desses processos que resida a sua riqueza
maior de sentidos.
Almofariz, 1771. Acervo
Museu do Ouro/Ibram.
Fotografia: Daniel
Mansur
Referências:
GONÇALVES, J.R.S. Ressonância, materialidade e subjetividade: As culturas como patrimônios. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 11, n.23, p.15-36, 2005.
~
Querido leitor, assine seus comentários!
Fantástico o conceito de um museu vivo... Que a história passada acione nossa memória na emoção como também nos conscientize de possíveis transformações para melhor refazer o futuro... Glaura
ResponderExcluirAdorei. Na casa de mãe tem um antigo que foi do meu avô. De ferro fundido.
ResponderExcluirO Museu está sempre em processo, seu discurso ou narrativa é sempre incompleto...seus objetos expostos podem ser sempre significados pela experiência do outro, de quem o visita.
ResponderExcluirMuito bom Isabella você nos trazer Bakthin para ajudar a pensar, refletir sobre e também por demostrar ressignificacao de maneira tão sensível por meio da memória de Dona Diolinda.
Isabella. Muito bem.Gostei. Sempre vejo esses objetos ai no museu na linguagem museologica. Mas agora já vou olhar a peça com outro olhar. Mais caseiro.
ResponderExcluirA consciência história e a compreensão-interpretação individual variam com a ética, a cultura, a educação e o jushumanismo. No museu, há a tensão entre o conceito em si descrito na identificação do objeto e o conceito para si dado pelo visitante, este é sempre atemporal no seu jushumanismo de relembrar a avó no ato de amar através da culinária.
ResponderExcluirVocê é incrível! O fechamento do seu texto é impecável. Quase tudo na vida é assim. Tem uma importância fundamental para cada olhar. E, geralmente, o olhar mais simples, é o que melhor consegue extrair do objeto a sua real riqueza. Adoro ler o que você escreve. Silas Fonseca
ResponderExcluirMuito interessante a exposição sobre as possibilidades do sujeito social interpretar e ressignificar os signos. Nesta roda da vida a cultura, patrimônio de um povo, se expande, enriquece. Parabéns, Isabela!
ResponderExcluir