CONTRIBUIÇÕES IMORTAIS: "O Estouro da Manada", texto de Mário de Lima Guerra


O ESTOURO DA MANADA
MÁRIO DE LIMA GUERRA

Membro-fundador da Academia de Ciências e Letras de Sabará
Cadeira 23. Patrono: Osvaldo Alvarenga



Quando eu era criança, o “politicamente correto” era gostar de filmes de cowboy, que nós falávamos “Cóboi”. Até que um dia, em um programa da Rádio Mayrink Veiga, o locutor deixou clara a pronúncia que devíamos usar.

Eu não achava muita graça nos filmes de cowboy, porque todos eles tinham, pelo menos a meu ver, o mesmo enredo: roubo de gado, índios, assassinos, mexicanos ladrões e covardes, bandidos com traços latinos, heróis loiros muito valentes e bonzinhos e que nunca erravam o alvo. Eram histórias excessivamente previsíveis.

Mas meus amiguinhos e outras crianças da cidade, pelo menos pela reação que manifestavam (bater o pé no assoalho do venerável Teatro Elizabethano, onde funcionava o cinema, gritaria, cusparadas das frisas superiores sobre a plateia, empurrões e brigas), adoravam os “filmes de artista”, como dizíamos, referindo-nos aos astros norte-americanos do western.

Minha preferência era pelos desenhos animados de Walt Disney e pelas comédias de “O Gordo e o Magro”. Esses, sim, eram filmes com histórias de desfecho imprevisíveis. Lembro-me muito dos “artistas” dos westerns: Johnny Mack Brown, Bill Elliott, Buck Jones, e Roy Rogers. Este saía fora do figurino, pois tinha traços orientais, cantava, era “casado” (com Dale) e frequentemente apanhava dos bandidos.

Na verdade, os westerns eram um suplemento, se assim posso definir, dos primeiros minutos da sessão cinematográfica, cuja finalidade era a “fita em série”, sempre de aventuras eletrizantes e de muito suspense. Essas fitas em série seriam o que hoje faz a TV com as novelas, mas os capítulos eram semanais e não diários, o que nos instigava a muito mais emoção. Inesquecíveis: “Flash Gordon, no Planeta Mongo”, “Flash Gordon, no Planeta Marte”, “A Aranha Negra”, e muitos outros. Os seriados, como nós crianças chamávamos esses filmes, eram o clímax de nossas tardes de domingo e estes animavam-me também a bater os pés no assoalho do velho teatro, gritar, assoviar e bater palma com meus colegas do “Paula Rocha”, sempre presentes.

O ingresso para aquela felicidade dominical custava um cruzeiro e vinte centavos, que nós falávamos mil e duzentos. Para a maior parte das crianças era difícil receber dos pais essa quantia no domingo. O chicletes custava cinquenta centavos, que nós dizíamos “quinhentos réis”. O picolé era o mesmo preço e cada bala era “um tostão”, dez centavos, na época.

A partir de uma hora da tarde, uma sirene esganava:

— Aaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaah!

Como se dissesse:

“— Venham, meninos, está na hora da matinê.”

Não havia criança que parecesse impassível. Após ouvir o estridente apelo, eu ouvia nitidamente o aflitivo grito da sirene, mesmo residindo longe do local, na época (década de 40) meu pai já falecido, eu vivia com minha mãe e minha irmã (Lourdes Guerra), na casa de minha vó, hoje rua Prof. Azeredo, 197. Essa casa ainda existe e pertence aos meus primos Inez e Gabriel. Situa-se após aquela que foi linha férrea, em frente ao “campo de futebol” do “Alves Nogueira”. A partir de 1954, Juscelino transformou o local e o rebatizaram como “Praça de Esportes”. Vi Juscelino em carne e osso na inauguração. Acreditam?

O cinema, até 1946 ou 1948, chamava-se “Cine Theatro Central” e pertencia ao Sr. Milton Trópia, ouro-pretano, cuja família reside até hoje naquela nossa antiga capital. Depois passou para os sabarenses Agostinho e Jonas (“os irmãos Pinto”), que retomaram de Volta Redonda (RJ), onde trabalhavam. Mudaram o nome do cinema para “Cine Borba Gato”. Família muito querida em Sabará. Principalmente por causa da inesquecível matriarca Sá Nica e do seu marido Segismundo, todos os seus membros adultos assumiram postos de trabalho no cinema. Os únicos funcionários de que me lembro não pertencerem à família dos Pinto eram “Chico Suvio” e o “Deco”. O Chico Suvio, moreno, raquítico, sempre de terno e sem gravata, era um porteiro implacável, pois ninguém conseguia passar por ele e entrar grátis e, ainda, merecia ouvir seus intermináveis discursos sobre o Vasco da Gama. O Vasco, um time de futebol carioca, era fanaticamente o preferido pelo porteiro, mas, em Sabará, tínhamos o Siderúrgica, e havia ainda os outros times mineiros: Vila, Metalusina, Sete de Setembro, América e os indefectíveis Atlético e Cruzeiros. Obter notícias do Vasco era quase impossível, pois mal conseguíamos sintonizar as notícias de futebol das emissoras de rádio de Belo Horizonte. Mas ai de quem contestasse o porteiro vascaíno. Eu mesmo cheguei a ser insultado por ele, por defender nosso Siderúrgica, que no ano de 2020 comemorou 56 anos de campeão mineiro de futebol e 55 anos de “falecimento”. Já o Deco, hábil artesão, filho de “Dona”, da famosa família dos “Faqueiro” do Largo do Rosário, era o marqueteiro do cinema. Os “Faqueiro”, na verdade, eram a família Moraes. O apelido “Faqueiro” decorreu da famosa fábrica de facas dos homens da família, que ficava no sobrado em que moravam, até hoje sobranceiro guardando a lateral do Templo dos Escravos[i]. Deco produzia cartazes em armação de madeira, sacos de aniagem e papel marché. Os letreiros dos cartazes eram cuidadosamente pintados, anunciando os filmes e os “artistas”. Em seguida, o próprio artesão amarrava os cartazes em postes, no centro da cidade.

Sobre a família dos Moraes, Sabará precisa registrar muita coisa. Meu amigo, o engenheiro, matemático, professor, poeta e membro da Academia de Ciências e Letras de Sabará, Prof. José Eustáquio Evangelista, que é da família dos “Faqueiro”, poderia relatar alguns dos episódios dos seus antepassados para os pesquisadores de nossa história.  Relato um curioso caso relacionado com os “Faqueiro”, que ouvi do maior atleta de futebol sabarense, o Mingueirinha (Clementino Vieira):

Havia, no Rio, no time do Vasco da Gama, um famoso jogador negro apelidado de “Sabará”. Em geral, o grande público julgava fosse ele nosso contemporâneo. Nada disso, ele era paulista. Acontece que ele sempre trazia na cintura uma faca, e, na faca, estavam gravados os nomes da fábrica e da respectiva cidade: “Moraes – SABARÁ”. Como se vê, as facas dos Moraes percorreram Minas e eram comercializadas até no Rio de Janeiro. Hoje, um exemplar desta faca pode ser visto no Museu da Gente Mineira, sede da Academia de Ciências e Letras de Sabará.

E as filas intermináveis para assistir Oscarito e Grande Otelo nas inesquecíveis comédias da “Atlântida”, com muito carnaval, muito riso e suspense romântico de Eliane, Cyll Farney, Anselmo Duarte e Fada Santoro.

Mas o que tanta conversa tem a ver com o título deste conto? “O Estouro da Manada”? É que o filme com este título, foi o único western que realmente apreciei. Joel McCrea, ator sem os estereótipos dos denominados “artistas”, foi, para mim, o melhor de todos. E não era um mero filme de “suplemento”, era um filme de longa duração. O “Estouro da Manada” resgatou o mal conceito dos filmes de cowboy, pelo menos em minha opinião, naquela época.

Depois dele, os italianos dominaram o mercado com os famosos westerns “macarrônicos”, que eu também muito apreciei.

Mas o fim do Cine Borba Gato já estava decretado!

Em 1958, era inaugurado com muita festa e discurso o “Cine Bandeirante”. Novinho em folha. O título do filme da primeira sessão não poderia ser melhor: “A Caldeira do Diabo”, pois o novo cinema foi como uma caldeira em que o saudoso Cine Borba Gato cozinhou definitivamente.

O Cine Borba Gato ainda resistiu por algum tempo. Cheguei a assistir nele, em seus derradeiros momentos, a alguns filmes italianos de ótimas safras e o clássico inglês “Ricardo III”, com Lawrence Oliver bradando: “Meu reino por um cavalo! ”

Novos tempos (década de 60), novas preferências, o “chic” passou a ser a sessão domingueira das seis e meia (da noite) no novíssimo Cine Bandeirante.

A TV Itacolomi chegando em todas as casas. Os “vídeo-tapes” comprovando que o futebol do Rio não era lá essas coisas, muito menos o Vasco do Chico Suvio.

O cinema, no Brasil e no resto do mundo, assistiu ao declínio de ocupação de suas poltronas. E, como os respectivos filmes de cowboy na pequena tela do Cine Borba Gato, acabou com um:

THE END.



[i] Templo dos Escravos – Igreja de Nossa Senhora do Rosário, única igreja barroca mineira inacabada, o que propicia aos estudiosos de Arquitetura desenvolver pesquisas sobre a admirável técnica portuguesa de edificação de paredes com pedras superpostas.




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Comentários

  1. É Dr. MARIO GUERRA que passado lindo infância sadia e feliz. Recordações impar, relato verdadeiro de uma passagem que se pudesse voltar ao tunel do tempo só alegria.Parabéns por este conto de valores real e familiar com tanto amor...
    Cristina Talabar.

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  2. Parabéns,professor Mário pelo nosso dia e pela sua narrativa que nos remete ao passado de forma contagiante!!!! Adorável!!!!!!

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  3. Ah! Sou a Mônica Maria Granja Silva,viu?!

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  4. Prezado Amigo Mário, seu caso me jogou lá na década de 50 em Santo Antônio do Monte. Gostei muito e me vi fazendo coisas bastante semelhantes às que você narra. Parabéns e obrigado. Abraços fraternos.

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  5. Meu amigo Mário, retornei à minha infância transportado pela nave da saudade da qual você era o piloto, sensível e experiente. Bati os pés no chão, bati palmas e gritei durante os filmes que assisti. Você, com a sua capacidade de transitar pelo passado, munido de palavras doces, sutis e inimitáveis, me fez chorar de saudades. Recordar cenas da infância sem o sabor de suas narrativas é o mesmo que confessar e não pagar as penitências. Por fim, você me levou de volta às minhas "paixões eternas", todas artistas de filmes americanos (Jane Mansfield, Elizabeth Taylor e outras mais) que faziam brotar, prematuranente, em mim, gotas poderosas de testosterona, que na época começava a me atormentar. Ah Mario Guerra, não sei se agradeço ou se condeno você pela viagem na nave da saudade. Plagiando o inexcedível Machado de Assis só posso dizer que na vida, o menos ruím é recordar. Obrigado! CIRILO DE PAULA FREITAS ( via e-mail da Carolina )

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  6. Bom reviver esse tempo,tão bem lembrado pelo querido amigo Mário!
    Pertenci a essa maravilhosa época,Saudades gostosas,pois foi um tempo maravilhoso!

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