CONTRIBUIÇÕES IMORTAIS: "Enfim, eu podia sorrir", conto de Ana Maria Guerra Machado
ENFIM, EU PODIA SORRIR
Eram dias
difíceis. Caminhar pelas ruas, saltando os destroços daquilo que tinha sido
parte de minha infância e juventude, aspirar o cheiro de pólvora, que já ia pra
mais de vinte e quatro horas no ar... Mas o céu estava impressionantemente
azul, e o sol, impressionantemente dourado. Queimava minha pele. Eu sentia o
calor dos raios penetrando pelo tecido das minhas roupas.
Muito,
muito quente!
As pessoas
passavam por mim e umas pelas outras e ninguém se cumprimentava. Eu conhecia a
todos! Olhava cada rosto, e alguns me olhavam de volta. Nenhuma reação, nenhum
sorriso, nenhuma careta.
Eu escutava
apenas os passos apressados, em todas as direções. Ao longe, alguma criança
chorava. Em algumas esquinas, conversas nervosas.
Já estava
andando por algum tempo. Não havia automóveis trafegando. Precisava
chegar. Precisava chegar.
No fim da
cidade, havia um bosque. Lá haveria um jeep me esperando. Seguiríamos por três
horas, até o descampado, onde um helicóptero me transportaria em segurança para
a capital.
Virei a
próxima esquina e cheguei à praça. O coreto, praticamente sem o telhado. Mas a
capela estava de pé. Parei para me atentar aos detalhes da porta rebuscada… a
única coisa que transpirava calma e serenidade... Fechei os olhos e engoli em
seco. Havia me esquecido de um amigo, em casa. Uma imagem que minha mãe ganhara
e à qual eu tinha me agarrado, nada perfeita, mas de uma beleza que beirava a
infantilidade... Era feita de borracha, parecia borracha de pneu, mas era muito
bem esculpida e acabada, e o santo tinha um sorriso amigo. Ele parecia amigo.
Isso mesmo. Usava a veste marrom, cordão branco na cintura, tonsura na cabeça,
e segurava o Menino Jesus com rostinho cândido e um ramalhete de lírios. Sempre
que eu o olhava, eu sorria. Independente da situação ou do meu estado de
espírito, eu sempre sorria, ao encontrá-lo. Senti uma terrível tristeza,
porque eu não tinha como voltar. Não havia tempo. Mais um pedaço meu que
ficaria neste lugar! Mais um pedaço condenado ao meu passado.
Prendi a
respiração para não chorar. Ainda não era o momento. Eu teria muito tempo pra
isso. Continuei o caminho, sempre em frente, mas agora de cabeça baixa. E a
sensação estranha da indefinição de voltar a sorrir algum dia!
Enfim, saí
da cidade. Entrei aos poucos no bosque pela trilha que os ciclistas utilizavam
para o tal ecoturismo, muito comum aqui nas terras calmas do interior. Ouvi
barulho atrás de mim. Tive uma tontura rápida, descarga mesmo de adrenalina ou
coisa parecida. Em milésimos de segundo, meu corpo todo se enrijeceu. Um pavor
aumentou absurdamente a frequência do meu coração. Em um gesto automático,
olhei em direção ao barulho. Havia um carvalho velho, com seus galhos
retorcidos e largo tronco, e encostado a ele, um menino me olhando. Este
menino, eu não conhecia. Alguma coisa me dizia que ele não me era um
estranho. Mas não era o momento para perguntas. Olhei à minha volta. Tudo
continuava silencioso. O menino ensaiou o passo e seus pés provocaram o barulho
nas folhas secas e úmidas que cobriam o chão. Eu tive medo de ir até ele. Não
foi preciso. Ele se aproximou e sorriu. Eu estava chocada e assustada. Não. Eu
estava apavorada! O menino não apresentava qualquer reação frente ao que estava
acontecendo na cidade. Forcei um sorriso. Foi um sorriso quase doloroso. Mas eu
tinha a impressão de que já o tinha visto em algum lugar! Ele me entregou um
saquinho de feltro verde, com barbantes dourados, e saiu correndo de volta ao
carvalho. Mais uma vez, fiquei estarrecida! Mais uma vez, um monte de sensações
e reações que nunca tinha experimentado. Isto estava ficando comum demais!
Sempre gostei de entender o que sentia, como e por que o sentia! Não era hora
de pensar. Era hora de continuar! Segui em frente. Gastei apenas alguns minutos
até o alargamento do bosque. O jeep acionou os motores, e eu corri, e eu
entrei.
O jeep se
afastava pela trilha e eu procurava minha visão entre as árvores e arbustos. O
sol entre as folhas dava um ar místico ao local. Mas eu sabia que não tinha
sido uma ilusão ou delírio.
Apertei o
saco de feltro e desfiz o nó, sem dificuldade.
Então, eu descobri de onde me lembrava daquele menino com expressão suave e amorosa. Enfim, já era o momento de chorar. Coloquei o saquinho próximo ao rosto e o cheiro da borracha me lembrou que agora, também, eu já podia voltar a sorrir!
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Ana, que conto incrível!!!
ResponderExcluirRealismo e misticismo!!!Adorável!!! Que o "menino"a abençoe, aos seus e a nós,também!!!!Parabéns!!! Mônica Maria...
Lindo conto! Parabéns Ana! Muito sucesso!
ResponderExcluirUm abraço,
Carla Tavares
Excelente conto Ana, você, como sempre, está de parabéns!!!!
ResponderExcluirExcelente conto Ana, você como sempre, está de parabéns!!!!
ResponderExcluirAdorei. Alusão a Santo Antônio!
ResponderExcluirA minha aluna menina, lá dos tempos áureos do Paula Rocha,cresceu! Que delícia de narrativa! Parabéns, querida!
ResponderExcluirQue suave... um minuto sem fôlego, um minuto em suspenso, outro ainda em suspense! E eu sorri com sua familiaridade! Que belo cheiro de borracha! Lindo! Parabéns, Aninhaaaa!
ResponderExcluirEmoção puríssima! Amei.👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻
ResponderExcluirSelma
Ana Maria, hein? Muito legal. Contista de primeira linha. Aliás, este "Machado"...
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