CONTRIBUIÇÕES IMORTAIS: "Enfim, eu podia sorrir", conto de Ana Maria Guerra Machado

ENFIM, EU PODIA SORRIR

ANA MARIA GUERRA MACHADO
Membro-fundador da Academia de Ciências e Letras de Sabará
Cadeira 8. Patrono: Benedito Machado Homem

Eram dias difíceis. Caminhar pelas ruas, saltando os destroços daquilo que tinha sido parte de minha infância e juventude, aspirar o cheiro de pólvora, que já ia pra mais de vinte e quatro horas no ar... Mas o céu estava impressionantemente azul, e o sol, impressionantemente dourado. Queimava minha pele. Eu sentia o calor dos raios penetrando pelo tecido das minhas roupas. 

Muito, muito quente!

As pessoas passavam por mim e umas pelas outras e ninguém se cumprimentava. Eu conhecia a todos! Olhava cada rosto, e alguns me olhavam de volta. Nenhuma reação, nenhum sorriso, nenhuma careta.

Eu escutava apenas os passos apressados, em todas as direções. Ao longe, alguma criança chorava. Em algumas esquinas, conversas nervosas.

Já estava andando por algum tempo. Não havia automóveis trafegando. Precisava chegar. Precisava chegar.

No fim da cidade, havia um bosque. Lá haveria um jeep me esperando. Seguiríamos por três horas, até o descampado, onde um helicóptero me transportaria em segurança para a capital.

Virei a próxima esquina e cheguei à praça. O coreto, praticamente sem o telhado. Mas a capela estava de pé. Parei para me atentar aos detalhes da porta rebuscada… a única coisa que transpirava calma e serenidade... Fechei os olhos e engoli em seco. Havia me esquecido de um amigo, em casa. Uma imagem que minha mãe ganhara e à qual eu tinha me agarrado, nada perfeita, mas de uma beleza que beirava a infantilidade... Era feita de borracha, parecia borracha de pneu, mas era muito bem esculpida e acabada, e o santo tinha um sorriso amigo. Ele parecia amigo. Isso mesmo. Usava a veste marrom, cordão branco na cintura, tonsura na cabeça, e segurava o Menino Jesus com rostinho cândido e um ramalhete de lírios. Sempre que eu o olhava, eu sorria. Independente da situação ou do meu estado de espírito, eu sempre sorria, ao encontrá-lo. Senti uma terrível tristeza, porque eu não tinha como voltar. Não havia tempo. Mais um pedaço meu que ficaria neste lugar! Mais um pedaço condenado ao meu passado.

Prendi a respiração para não chorar. Ainda não era o momento. Eu teria muito tempo pra isso. Continuei o caminho, sempre em frente, mas agora de cabeça baixa. E a sensação estranha da indefinição de voltar a sorrir algum dia!

Enfim, saí da cidade. Entrei aos poucos no bosque pela trilha que os ciclistas utilizavam para o tal ecoturismo, muito comum aqui nas terras calmas do interior. Ouvi barulho atrás de mim. Tive uma tontura rápida, descarga mesmo de adrenalina ou coisa parecida. Em milésimos de segundo, meu corpo todo se enrijeceu. Um pavor aumentou absurdamente a frequência do meu coração. Em um gesto automático, olhei em direção ao barulho. Havia um carvalho velho, com seus galhos retorcidos e largo tronco, e encostado a ele, um menino me olhando. Este menino, eu não conhecia. Alguma coisa me dizia que ele não me era um estranho. Mas não era o momento para perguntas. Olhei à minha volta. Tudo continuava silencioso. O menino ensaiou o passo e seus pés provocaram o barulho nas folhas secas e úmidas que cobriam o chão. Eu tive medo de ir até ele. Não foi preciso. Ele se aproximou e sorriu. Eu estava chocada e assustada. Não. Eu estava apavorada! O menino não apresentava qualquer reação frente ao que estava acontecendo na cidade. Forcei um sorriso. Foi um sorriso quase doloroso. Mas eu tinha a impressão de que já o tinha visto em algum lugar! Ele me entregou um saquinho de feltro verde, com barbantes dourados, e saiu correndo de volta ao carvalho. Mais uma vez, fiquei estarrecida! Mais uma vez, um monte de sensações e reações que nunca tinha experimentado. Isto estava ficando comum demais! Sempre gostei de entender o que sentia, como e por que o sentia! Não era hora de pensar. Era hora de continuar! Segui em frente. Gastei apenas alguns minutos até o alargamento do bosque. O jeep acionou os motores, e eu corri, e eu entrei.

O jeep se afastava pela trilha e eu procurava minha visão entre as árvores e arbustos. O sol entre as folhas dava um ar místico ao local. Mas eu sabia que não tinha sido uma ilusão ou delírio. 

Apertei o saco de feltro e desfiz o nó, sem dificuldade.

Então, eu descobri de onde me lembrava daquele menino com expressão suave e amorosa. Enfim, já era o momento de chorar. Coloquei o saquinho próximo ao rosto e o cheiro da borracha me lembrou que agora, também, eu já podia voltar a sorrir!



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Comentários

  1. Ana, que conto incrível!!!
    Realismo e misticismo!!!Adorável!!! Que o "menino"a abençoe, aos seus e a nós,também!!!!Parabéns!!! Mônica Maria...

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  2. Lindo conto! Parabéns Ana! Muito sucesso!
    Um abraço,
    Carla Tavares

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  3. Excelente conto Ana, você, como sempre, está de parabéns!!!!

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  4. Excelente conto Ana, você como sempre, está de parabéns!!!!

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  5. A minha aluna menina, lá dos tempos áureos do Paula Rocha,cresceu! Que delícia de narrativa! Parabéns, querida!

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  6. Que suave... um minuto sem fôlego, um minuto em suspenso, outro ainda em suspense! E eu sorri com sua familiaridade! Que belo cheiro de borracha! Lindo! Parabéns, Aninhaaaa!

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  7. Emoção puríssima! Amei.👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻
    Selma

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  8. Ana Maria, hein? Muito legal. Contista de primeira linha. Aliás, este "Machado"...

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