CONTRIBUIÇÕES IMORTAIS: "O 'pó, pó, pó' da minha avó", de Selma Regina Cândida Rossi
O "PÓ, PÓ, PÓ" DA MINHA AVÓ
SELMA REGINA CÂNDIDO ROSSI
Membro-fundador da Academia de Ciências e Letras de Sabará
Cadeira 19. Patrono: Lucas José de Alvarenga
A vassoura, levando as folhas pra lá, tinha um som ritmado e era uma canção diária pra ela. Aquelas mãos tão maduras, braços já cansados, iam no ritmo e em frente limpando a calçada. Iam tão adiante que brincávamos que a rua não precisava de gari; se deixassem, ela varria o quarteirão inteiro.
As pessoas passavam e entre um bom dia e outro, uma paradinha para uma conversinha a mais. Essa era a distração, o exercício, a alegria daquela que teve uma longa vida.
Com orgulho dizia a quem perguntava seu nome: “meu nome é Raymunda, Raymunda com ipisilone”.
Casou-se aos quatorze, teve minha mãe aos quinze, ficou viúva aos dezesseis e nunca teve um companheiro até os 96 anos.
Ir à Igreja, seu maior gosto, foi ficando raro. Insistente, a resiliente tentava ir, mas as quedas pelo caminho tornaram-se impedimento total.
O varrer, não. Esse persistia. Como se varresse as angústias, as desilusões, a solidão dos dias, para renascer, enfrentar e fortalecer. Depois, para descansar um cansaço d’alma, sentava-se no muro largo e alto da casa centenária, ao lado da grande buganvília de um rosa forte e lindo. As flores murchavam, mas sob os seus cuidados floresciam sempre.
Com as mãozinhas em concha, batucava alternando as mãos em círculos e cantarolava baixinho: “pó, pó, pó poropopó, pó, pó, pó”, esse era o cantar da minha Avó, no ritmo do “Eu vou pra maracangalha eu vou...”, principalmente.
Ali, numa abstração gostosa, olhava o horizonte e o movimento pouco da sua rua desde menina, a rua do São Francisco, nome da Igreja, nome que clamava nos seus ais.
Antes e por longo tempo, cuidava da Igreja. Todos os dias ia ela, passinhos curtos, cadenciados, deslizantes. Subia a ladeira, tirava a poeira, arrumava as roupas das imagens, engomava as toalhas, levava flores, fazia tudo o que precedia a missa dos domingos, todos os domingos de uma vida inteira, sentia-se dona dali.
Depois, restaram-lhe o varrer a calçada e o cantarolar batucando com as mãos no colo, sentadinha naquele muro florido. Quantas histórias deviam vir à tona nesses momentos de abstração!
Casa cheia, muitas despedidas, também muitas festas – casamentos, aniversários, batizados, natais, carnavais, páscoas, quadrilhas. Todas na simplicidade que cabia, mas fartas pelas carnes das criações e das hortaliças e frutas da grande horta que cultivava e das muitas jabuticabeiras – a maioria com nomes de familiares que o velho Caiana, pai dela, plantava e nomeava em homenagem aos seus.
Comidas no fogão à lenha, o saudoso e gostoso “capitão” – pegava uma porção do mexidinho, enrolava na mão feito um croquete e colocava nas bocas infantis que a cercavam na cozinha. Doces feitos no tacho de cobre, fila pra raspar o tacho. Tudo apreendido de geração a geração.
Quantas lembranças cabiam naquela cabecinha forrada pela neve do tempo! Cabelos que foram ruivos, e apelidados de cabelos de fogo.
Quantas alegrias, perdas e provações faziam morada naquele pensamento e foram vistos por aqueles olhinhos tão azuis, azuis como um céu primaveril!
Na minha mais tenra infância, sentia um medo vestido de raiva, às vezes. Crianças não compreendem a dureza, a austeridade dos adultos. Gestos bruscos significavam falta de afeição e ela, apesar de momentos doces, tinha a rudeza da sua geração. Mais tarde, tentei entender o que estava por trás daqueles gestos, fora criada assim, houve amor ou a falta dele? O que nos fez ou o que deixou de fazer, passou. Então, concentrei-me mais nas doçuras que nas agruras, até porque, com a idade, sua doçura prevaleceu.
Ela nos contava uma história, dentre tantas, dos carnavais da infância. Sua mãe, minha Bisa, fazia fantasias de papel crepom para ela e as irmãs e as vestia por cima da roupa comum, para brincarem ali por perto. Elas iam, faceiras e sorrateiramente, pro Chafariz do Kaquende e jogavam água umas nas outras pelo prazer de ver o papel se dissolver e a fantasia se desfazer. Na volta, a mãe ralhava, tinha que fazer tudo de novo.
Tamanha inocência! Tamanha pureza nesse ato carnavalesco, brinquedo de papel crepom.
O tempo foi arrastando sua existência, longevidade dos Caiana nas veias.
E quando, maldosamente, por impaciência do cuidado – de outros que ela tanto cuidou – tiraram a vassoura das suas mãos, aquela flor foi murchando como a buganvília, mas ao contrário, não mais floresceu.
Não mais a calçada nem os bons dias e as conversinhas com os passantes. Não mais exercitar os membros e a cuca. Cessou o varrer das folhas dessa vida.
Restou-lhe o batuque cada vez mais lento, mais baixo e findo do seu simplório “pó, pó, pó”. Foi cuidar de outras Buganvílias, que jamais murcharão.
As dores foram varridas, as folhas retiradas, restituindo o caminho da real vida.
Esse som do “pó, pó, pó” ressoa em minhas lembranças, lembranças da minha Avó.
Querido leitor, assine seus comentários!
👏👏👏👏
ResponderExcluirObrigada.
ExcluirLindo minha amiga. Pó pó pó que virou pó, poeira que recobre suas, nossas memórias.
ResponderExcluirSim, amigo, nossas memórias, nossa história. Obrigada, querido!
ExcluirGrande Selminha! Benditos pó pó pó pó poro pós, que não deixam nossa memória perder o compasso da vida e nós restituem o encanto quando o mundo insiste em nós desencantar. Parabéns !
ResponderExcluirSilas Fonseca
Obrigada, meu poeta!
ExcluirPura doçura. Voltei no tempo…comer “capitão”… Parabéns 🌹🌹🌹
ResponderExcluirNão é? Ainda faço pra mim. Obrigada, amore!
ExcluirQue linda lembrança! Parabéns , é muita delicadeza! não deve se perder no tempo.🌹🌹🌹
ResponderExcluirObrigada, não se perde nunca!
ExcluirLinda homenagem amiga! Nossas lembranças nos fazem reviver. O amor é o que nunca se vai.
ResponderExcluirRosana Alves
Amiga, verdade, o amor vive eternamente. Obrigada, minha querida!
ExcluirQuerida Selminha, a cada leitura tua, uma doçura!!! Com um descrever simples - porém rico - você relata uma linda história de amor!! Como é gratificante te ler através de sua alma!! Viajei no tempo e vi sua Vó sentadinha no muro.. a pesar de ficar em cima do muro... Era decidida e maravilhosa!! Obrigado pela beleza de crônica!!!🙏❤️
ResponderExcluirGeraldo "Jurema" Guimarães
Prezado Amigo, como S cretária da ACLS ouso interferir aqui para lhe cobrar textos seus....tem mais crônicas para nós?! Envie-nos,por amor! Desejando que esteja bem junto aos seus, agradeço sua atenção! Abraços!
ExcluirAmigo querido, sabe bem que você me inspirou e me deu o exemplo. O agradecimento é meu. Sua escrita me guiou. Abraçaço!
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ResponderExcluirÉ uma forma de escrever com tanto cuidado, suavidade e emoção que nos emociona! Fiquei impressionado com a sua maestria em saber colocar cada palavra, da forma que coloca e da emoção que nos transmite um pouco da história de D. Raymunda, nossa avó Bisa! Viagem ao passado da forma mais linda que vi! ❤
ResponderExcluirAmado, você me emociona com esse carinho e sensibilidade. Gratidão imensa! Bjim da tia!
ExcluirLindas emoções descritas com o amor da pura infância, a gente se enreda e emociona como se estivéssemos presentes! ❤💐💐💐💐💐💐
ResponderExcluirAgradeço por viajar comigo no tempo. Emoções e boas lembranças nos refazem no presente. 🙏💋❤
ExcluirMeu Deus! Que crônica deliciosa,amiga!
ResponderExcluirAtravés da sua narrativa todas as avós foram relembradas com mais amor,tenha certeza!!! Você nos faz amar,amar e amar as pessoas,nossas e da vida! Gratidão!!!!
Obrigada, delícia é receber esse retorno. 🙏💋❤
ExcluirAh! Sou eu,Mônica Maria.Bjos!
ResponderExcluirParabens Selma. Revivi nosso passado distante tao presente em nossas vidas de uma forma deliciosa passando o dia cantarolando o "po...po...po... " que marcou nossa historia.Me lembrei do " mingau de milho" que bisa escondia pra nos e esquecia guardado fundo da gaveta .Quando achava era mofo puro... kkkk Quanta saudade!Parabens e muitos po...po...po... pra vc. Simbolo de vida. Bjus
ResponderExcluirUau! Lembrou ainda mais coisas que eu!
ExcluirÉ isso, nossa vida guardada em lembranças. ❤
Oi Selma. Suas palavras fluem como num vídeo, voltei no tempo, e lembrei de vários detalhes adormecidos. Tão bem escritas e colocadas:sem deslizes, excessos ou afetação. Uma crônica cheia de sentimentos de dentro da sua alma, que transportastes para os nossos corações. Bjs.
ResponderExcluirDa amiga: Raquel
Amiga dileta, da gema da infância, vivenciamos juntas tudo isso e agora, nessa nova fase, você me ajudou com riquezas essa minha escrita. Muita gratidão é o que lhe entrego. 💋❤🌹
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