CONTRIBUIÇÕES IMORTAIS: "Lenda do olhar", texto de Mário de Lima Guerra
LENDA DO OLHAR
MÁRIO DE LIMA GUERRA
Membro-fundador
da Academia de Ciências e Letras de Sabará
Cadeira 23. Patrono: Osvaldo Alvarenga
Tempo médio de leitura: 30min
Se
as imposições trazidas pela pandemia durarem para sempre, daqui a uns duzentos
anos os estudantes do futuro vão estranhar muito a liberdade de que antes
desfrutávamos. Os hábitos do nosso saudoso “normal” dificilmente poderão ser
compreendidos. Seremos julgados como uma corja de irresponsáveis. Andávamos sem
máscara e vivíamos nos amassando uns aos outros nas aglomerações das festas,
nas práticas religiosas, dentro dos ônibus, nos teatros, nas torcidas de
futebol, além dos nossos apertos de mão, abraços e beijos.
Vejo
alguns livros de História explicarem fatos do passado sem alertar seus leitores
para as profundas mudanças morais e sociais que ocorrem através do tempo. Seus
autores narram o que aconteceu ontem sem esclarecer a ótica da mesma época.
Relatam os fatos históricos com conceitos atuais e visão de costumes de hoje.
Os fatos do passado são então recebidos pelo estudante com uma roupagem odiosa
ou ridícula. Raramente os autores traçam um cenário que permita ao estudante ou
ao leitor se situar no ambiente cultural do fato narrado.
Para
evitar incorrer nesse mesmo equívoco no presente artigo, faz-se necessário um
pequeno preâmbulo:
Nos
tempos antigos de Sabará e de todo o Brasil, só havia líderes religiosos
católicos. A Carreira Eclesiástica era ao mesmo tempo uma honra, uma segura
fonte de renda e um sacrifício.
Honra
para si e para toda a família do padre. Ser padre era adquirir status social,
era sinônimo de cultura e sapiência, passava-se a ser uma verdadeira
autoridade.
Era
também uma segura fonte de renda por toda a vida, porque a Igreja era unida ao
Estado, e este pagava os padres como se fossem funcionários públicos. É claro
que o Estado não fazia isso de graça, pois se apropriava do Dízimo devido à
Igreja.
Mas,
sem dúvida, era um sacrifício, pois implicava abandonar a família, o círculo de
amizades, a terra natal, o direito de procriar e ainda se submeter a uma
rigorosa hierarquia terrena. Além disso, abandonar a batina era uma mácula
terrível. Impensável.
Também,
naquele tempo, quando um pai fazia uma determinação ao seu filho, este obedecia
a seu pai sem objeção. Era um costume indiscutível. Um pai possuía poder
ilimitado sobre seus filhos. Quase de vida e de morte. Destarte, quando a ordem
do pai era para o filho ir estudar para padre, o filho atendia. Ainda que não
tivesse a mínima vocação. Depois, sem jamais abandonar a batina, arranjava uma
esposa, tinha filhos e, às vezes, procurava se dedicar a uma rendosa atividade.
Dois
casos históricos emblemáticos de um rapaz ser padre sem ter vocação foram os do
Padre José Maurício e do Padre Rolim. O carioca Padre José Maurício Nunes Garcia
foi o maior compositor clássico sacro do Brasil, dedicando-se inteiramente à
música, que lhe proporcionou posição social e boa remuneração. Enquanto isso,
foi pai de cinco filhos com Severiana Rosa de Castro.
O
outro caso histórico foi o do diamantinense José da Silva e Oliveira Rolim, o
famoso Inconfidente Padre Rolim. Foi estudar no Seminário de Coimbra e lá se
ordenou. Em Diamantina, conquistou Quitéria (filha da bela Chica da Silva), e
com ela teve quatro filhos. Além de padre, jamais deixou o lucrativo ramo
explorado por sua família: contrabando de diamantes. Aliás, graças ao
contrabando, tornou-se herói, pois só entrou na Conjuração para tentar escapar
de uma condenação por ser contrabandista (acabou sendo preso como conjurado).
A
bem da verdade, é necessário também ressaltar que nem sempre a falta de vocação
levava padres só para seus interesses pessoais, pois o elevado nível cultural
adquirido nos Seminários antigos propiciou para ao Brasil grandes mestres,
inventores famosos e líderes políticos bem preparados. Foram políticos
desprendidos, valentes e patriotas, raramente encontrados nos dias de hoje.
Como exemplos podem ser citados o Regente Padre Antônio Feijó; o mártir da
Insurreição Pernambucana, Frei Joaquim Rabelo Caneca; e o Vice-Governador do
Ceará, Padre Cícero Romão.
* * *
Em
minha terra, o velho Sabará, contam várias histórias extraordinárias do tempo
antigo. Algumas teriam acontecido nas suas 17 igrejas e capelas centenárias do
total das 27 que existem. Lourdes Guerra Machado, em seu livro “Nas Ruas de
Sabará”, entre outras lendas, narra o caso da imagem de Santo Antônio que
apareceu em Roça Grande, o caso de uma monstruosa figura assustando a zeladora
da igreja do Carmo e o caso do osso da Procissão das Almas. Fora do âmbito das
venerandas igrejas, mais lendas se sucedem, e uma delas é sobre aquela
assombração horrenda que atacava mulheres no Chafariz do Kaquende e as
engravidava.
Outra história intrigante é a que vou
aqui narrar. Aconteceu há mais de dois séculos na Matriz de Nossa Senhora da
Conceição.
Foi
o seguinte: um rico minerador, angustiado com dificílima graça que almejava
alcançar, e em momento de grande aflição, ajoelhou-se aos pés da imagem da
Imaculada, Padroeira da Vila Real de Nossa Senhora da Conceição do Sabará. Ali,
chorou suas mágoas.
Fácil
recompor o cenário: o homem de joelhos, visivelmente abalado, em frente à
imagem de 80 cm no imponente altar-mor dourado.
Essa
imagem de 80 cm encontra-se ainda hoje na Matriz, só que em um dos altares
laterais, do lado direito de quem entra na igreja. Na época desse
acontecimento, ela ficava no altar-mor, pois ainda não havia a majestosa obra
de escultura portuguesa de Nossa Senhora que hoje lá se encontra.
Em
suas contritas orações, o minerador fez uma promessa:
Se
concedida a graça de que tanto necessitava, seu filho iria ser Padre. Mandaria
seu filho para estudar em Portugal e se ordenar como Padre.
O
minerador era Jorge Pereira da Silva. O ano era de 1772.
E
a graça, considerada quase impossível, foi alcançada plenamente.
O
tempo passou.
O
filho de Jorge Pereira da Silva cresceu.
Quando atingiu a idade adequada para
ser encaminhado a Portugal, o rapaz já estava deslumbrado com a beleza e a
faceirice das morenas sabarenses. Bateu o pé, brigou com o pai, mas não
concordou em abandonar suas namoradas.
E,
por muito que o pai insistisse, o jovem sabarense ficou irredutível. Não ia ser
padre.
Certamente o rapaz até apanhou do pai,
pois este era o costume daquele tempo para tratar filhos desobedientes e
escravos indisciplinados.
Mas nada demoveu o romântico moço.
Caráter muito firme, ao contrário de outros que obedeciam na hora e depois
faziam o que bem entendiam.
O
que fazer? A graça havia sido alcançada, mas a promessa não ia ser cumprida.
O bom pai, desconsolado e envergonhado
por não honrar a palavra empenhada, procurou o Vigário, Padre Doutor Lourenço
José de Queiroz Coimbra. Expôs o torturante drama: castigar seu filho sob a
chibata até ele desistir das moças e ir vestir uma batina em Coimbra ou
descumprir o prometido.
Padre Lourenço pediu um tempo para
refletir sobre o complexo assunto. Precisaria de um recolhimento em suas
meditações. E assim foi feito naquele distante ano de 1778.
Para
melhor compreendermos a situação, faz-se necessário que nos transportemos para
as convicções daquela distante época, como já exposto na introdução. Era uma
questão grave, porque o povo depositava seu destino unicamente na Fé e suas
ideias ainda não haviam sido influenciadas pelo laicismo descrente e
racionalista. Soma-se a isso o conceito de honra então vigente, no qual um
compromisso jamais deixava de ser cumprido. Era o tempo em que se falava no
“fio de bigode” como garantia. E, se fosse compromisso sagrado, seria
inconcebível qualquer traição.
Depois
de muito pensar, o Vigário Doutor mandou chamar o minerador. Havia encontrado
uma solução. Poderia autorizar o descumprimento da promessa, desde que o
dinheiro necessário à formação de um padre fosse gasto na compra de uma imagem
nova para Sabará. Evidentemente, muito maior e mais rica do que a existente.
Feliz
da vida, por ter sido retirado um peso de sua consciência sem se conflitar com
o filho querido, Jorge Pereira da Silva iniciou imediatamente as providências
para a compra. Como a promessa seria para o rapaz ir estudar em Portugal,
entendeu que a imagem deveria ser encomendada em Lisboa. Bom negociante que
era, primeiramente buscou informações para calcular o valor total de dinheiro
necessário para formar um padre. Seria o teto orçamentário de sua encomenda a
um artesão português.
Na
data de hoje, fevereiro de 2021, o custo mensal para a formação de um padre no
Brasil (que dura 12 anos), sem contar alimentação, alojamento, vestuário,
livros e material escolar, é no mínimo de R$ 1.350,00. Nos Seminários das
Europa, o valor mensal mínimo é de 350 euros, mas inclui alimentação e
alojamento. Considerando esses dois valores e multiplicando-os por 12 anos de
estudos, poderíamos estabelecer uma faixa de custos entre R$ 194.400,00 e R$
336.000,00 (com a cotação do euro em R$ 6,67). Dessa forma, se aceitos esses
raciocínios e se a promessa fosse para ser cumprida hoje, o orçamento teria que
ficar entre R$ 194.400,00 a R$ 336.000,00.
Evidentemente,
a imagem que Jorge encomendou é atualmente um tesouro de valor incalculável.
Não tem preço. Para nós, sabarenses, ela vale mais que a Mona Lisa do Louvre.
Os valores aqui estimados são apenas para facilitar a imaginação do que alguém
teria que orçar em 2021 para encomendar em Lisboa uma imagem no valor da
formação de um padre. E, como se vê, seria um valor altíssimo.
Na
época, não se usava o verbo “comprar” para se referir à aquisição de imagens.
Como sinal de respeito, usava-se o verbo “trocar”. Para “trocar” a imagem,
Jorge Pereira da Silva pagou aos portugueses uma elevadíssima quantia, com toda
certeza. Em compensação, trouxe para Sabará a mais linda peça escultural da
Virgem que existe em Minas. Com pinturas a ouro, brincos de brilhantes e coroa
em prata lavrada. Mais os custos de transporte. De Portugal até o Rio de
Janeiro veio em um navio. Do Rio até Sabará, viajou pela Estrada Real, nem
consigo imaginar em quais condições.
Tiros,
sinos e música. Te Deum e Missa. Esplêndida teria sido a recepção na chegada da
maravilhosa imagem.
É
a mais bonita imagem de Minas Gerais. Talvez do Brasil.
E,
possivelmente, a maior de todas as imagens de Maria talhadas em madeira. São
dois metros e meio de altura da mais fina arte portuguesa. Nem mesmo a grande imagem de Nossa Senhora
Rainha dos Anjos da Igreja de São Francisco de Sabará possui as dimensões da
imagem de Nossa Senhora da Conceição da Matriz.
Instalada
a imagem nova no local da antiga, a notícia se espalha como fogo em capim seco.
Todo mundo queria conhecê-la.
Sabará
inteiro acorre. De Sabará só, não. De toda a região vem gente: Congonhas do
Sabará, Vila Nova da Rainha de Caeté, Nossa Senhora da Conceição de Raposos,
Ribeirão do Raposo, Santo Antônio do Rio Acima, Curral Del Rei, Santa Luzia,
Taquaraçu, Contagem, Nossa Senhora da Saúde de Lagoa Santa, Lapa, Capela Nova,
Santa Quitéria, e até de São João do Morro Grande e Santo Antônio do Ribeirão.
Todos
se encantam. Os sabarenses incham-se de um santo orgulho, não só com sua beleza
e dimensões, mas com o olhar da imagem. Era impressionante.
Ao
chegarem na porta da Matriz, a primeira coisa que faziam era olhar para a
imagem no altar. E, espanto geral, os olhos dela recebiam cada fiel, fitando-o
com um misto de doçura maternal e firmeza. Sentia-se os olhos da imagem
dirigidos fixamente para os próprios olhos de quem chegasse à porta principal.
Os
anos se sucedem, o envelhecimento se acelera, e Jorge Pereira da Silva vem a
falecer.
Como
se fazia naquele tempo, o rico minerador é sepultado dentro da igreja. Sua
sepultura encontra-se na Capela-Mor da Matriz, do lado direito de quem entra,
bem próximo daquela outra maravilhosa obra de arte, que é a Porta de Macau.
Para quem não sabe, é a porta da sacristia trazida diretamente da então
possessão de Portugal na China. Arte chinesa do século XVIII. As tábuas que
cobrem a sepultura estão antes daquela porta e depois do altar lateral do santo
jesuíta São Francisco de Borja. Aquele que fica perto da parede com os painéis
do Juízo Final, do Inferno e dos Quatro Cavaleiros do Apocalipse. Fácil localizar.
No
dia seguinte ao sepultamento, bem cedo, o Sacristão abre as portas da igreja,
sobe a longa escadaria de uma das torres e bate os sinos. Os fiéis, acordando,
aprontam-se para a Missa. Dirigem-se à porta principal da igreja. Ao entrar,
como sempre fizeram, levantam seus olhos para fitar os olhos da imagem. Receber
o simbólico acolhimento no encontro dos olhares.
Estranham
alguma alteração. Não sentem a mesma firmeza no olhar. Alguma coisa
aconteceu...
Dias
se passam, e cada um guardando em seu coração o mistério particular que se
recusa a dividir com alguém: não está mais sendo recebido pelo mesmo olhar da
imagem.
Até
que um primeiro, ou uma primeira, encoraja-se e abre o assunto com pessoa de
sua extrema confiança.
—
Vou lhe revelar um segredo. Não sei o que está acontecendo comigo e peço-lhe
manter sigilo absoluto: não consigo mais perceber o firme olhar da imagem da
Padroeira em mim.
—
O quê? Acredita que o mesmo está acontecendo comigo? O que teria acontecido com
nós dois (ou com nós duas)?
A
notícia se espalha. Outros comentam estarem percebendo o mesmo fenômeno. O
Vigário é chamado. Caminha até a porta principal. Olha firme para os olhos da
imagem.
E
confirma tudo.
Ela
não olha mais para quem chega na porta principal da igreja.
Apesar
de que o Vigário nunca tinha reparado antes, pois não entrava na igreja pela
porta da frente, era sempre pela porta da sacristia.
Mas,
como sempre acontece com tudo de importante nesta vida de hoje, naquele tempo
também o povo ia se esquecendo. Aos poucos o caso cai no ostracismo, e ninguém
mais dele se recordava.
Alguns
meses depois, em uma calma tarde, um caminhante passa pela Matriz e resolve
entrar. Em parte pela devoção de orar, em parte para fugir um pouco do sol
escaldante. O templo silencioso e vazio e com aquele frescor interno oferecido
pela aconchegante arquitetura portuguesa. Caminha pela nave central, passa pelo
altar lateral de São Francisco Borja, entra na Capela-Mor e se ajoelha para
rezar. Exatamente em cima das tábuas que cobrem a sepultura de Jorge Pereira da
Silva, o doador da grande escultura de Maria. O devoto, em profundo
recolhimento, eleva seus olhos para a belíssima imagem. Olha para seus olhos.
Assusta-se!
Limpa
os olhos com as costas da mão e olha de novo.
Inacreditável!
A
imagem parece estar olhando fixamente agora é para aquele lugar onde está
ajoelhado.
E,
mais uma vez, o olhar da imagem torna-se assunto do momento em Sabará:
—
O olhar, antes dirigido para quem chegava, agora está fitando a última morada
de Jorge.
Gratidão
a quem foi leal com sua promessa?
Se alguém desejar comprovar a
veracidade, ajoelhe-se no genuflexório do banco do local já descrito. É um
daqueles bancos menores. Olhe para os olhos da imagem.
O olhar da imagem está indo direto para
lá.
~
Um texto muito bom que nos faz viajar no tempo.... E que história bonita de fé e devoção! Logo que sairmos do lock down, vou me ajoelhar diante da virgem imaculada Conceição para ser olhada e agradecer pelas bênçãos de cada dia... Glaura
ResponderExcluirQue lindo! Mais uma página para engrandecer a história da sua cidade e de nosso estado.
ResponderExcluirMuito importante seus esclarecimentos iniciais. Localizar os fatos no seu tempo e espaço é fundamental para o entendimento correto. Parabéns pela pesquisa e pela memória.
Maria Helena Foscarini
Excluir👏🏻👏🏻👏🏻 história da gente, ótimas lembranças que enriquecem nossa memória.
ResponderExcluirSelma
Caro professor, como sempre me encantei com seu texto,com o contexto e....prometo ir até os locais mencionados, observar e me ajoelhar diante da imagem para,também olhar em seus olhos amorosos...Parabéns pelo belo trabalho! Mônica Maria Granja Silva
ResponderExcluirTexto fantástico, parabéns Dr.Mário!
ResponderExcluirSelma