CONTRIBUIÇÕES IMORTAIS: Conto "O Homem Folhado", de Bernardo E. Lops

 O HOMEM FOLHADO

BERNARDO E. LOPES
Membro-fundador da Academia de Ciências e Letras de Sabará
Cadeira 17. Patrono: Júlio Ribeiro

Tempo médio de leitura: 30min

 

[Algumas dúzias de anos após 2020. A procriação e evolução dos podcasts, maior veículo de comunicação e de entretenimento da população, reacendeu a tradição das radionovelas (nas quais a Literatura, em consumo minguante, encontra refúgio). Um dos fenômenos sociais acarretados é que as narrativas orais carregam uma linguagem mais formalizada e mais requintada.]

 

Ele passou anos assombrado por um pesadelo, foi moldado por ele, até que tudo aquilo desmoronou ao seu redor, revelando-se uma mera fachada.” A esse instante, o homem sentado na poltrona ergueu um sorriso. Aqueles olhos brilhavam de súbito interesse — uma lembrança! Meditou, por dois ou três segundos, com os dedos na barba rala.

O chiado do rádio levitava constante por trás do silêncio do narrador. O mesmo chiado sumiu sob a voz que se ergueu em seguida, de mulher, a personagem sem nome. O homem na poltrona se encurvou mais sobre a telinha da caixa de som, atento: “Todos nós vivemos numa espécie de sonho contínuo”, a voz feminina exclamou, acolhendo alguns segundos de silêncio e chiado antes de continuar: “Quando acordamos é porque alguma coisa, algum acontecimento, uma alfinetada que seja, perturbou as bordas daquilo que chamamos de realidade”.

A mão enrugada do homem girou o botão do rádio antigo para reduzir o volume até o chiado quase sumir. “Eu já te contei a história do Homem Folhado?”, interpelou.

Seu interlocutor, numa poltrona de frente, mexeu a cabeça; e só depois confirmou: “Não”.

“É a história do meu primo. Essa passagem me lembra muito ele. ‘Anos assombrado por um pesadelo’. ‘Moldado por ele’. Que um dia tudo desmoronou ao redor dele, revelando-se nada mais que uma mera fachada. Só que no caso dele não era um pesadelo. Era um sonho.”

O colega na poltrona oposta levantou a barra da calça e ajeitou a perna cruzada sobre a outra com interesse. Seus ombros se espalharam pelo couro do respaldo, como quem diz O que quer dizer? Conte-me tudo.

Com isso, o homem ao lado do rádio soltou um risinho de quem responde É uma história curiosa. É uma história muito curiosa. E, ocupando o lugar da radionovela, tomou rédeas da atmosfera esfumaçada da sala de estar com seu cheiro marrom.

“Meu primo tinha 32 anos quando percebeu isso. Estava para fazer 33. Ele tinha ido à casa da mãe para assar alguns pastéis folhados — desses congelados que se compra na forma de seis nos supermercados. Ia esperar que seu noivo saísse da missa na igreja ao topo da rua enquanto lia, descansava, tentava relaxar. E assava os pastéis, para enganar a fome até a hora de jantarem. Moravam ali perto, num condomínio, pra onde partiriam assim que a missa acabasse. Era um sábado.

“Aqui temos dois elementos importantes. Aliás: três. Um é que meu primo não ia mais à missa. Crescemos numa família católica, e tanto sua mãe quanto a minha eram exemplos perfeitos de pessoas que cultuam a Deus o tempo todo, mas pouco colocam em prática os ensinamentos escutados nas homilias e nos puxões de orelha que o pároco e o vigário pregavam. Meu primo tinha: sido fervoroso na adolescência; se tornado ateu ao final dela; ‘reencontrado’, digamos, Deus pouco antes dos 30 por influência de uma terapeuta mais espiritualizada e depois de seu companheiro, que tinha passado a levá-lo às missas. Depois, entrando novamente numa fase racional, se afastou da igreja outra vez. E continuou a acreditar em Deus. Um Deus diferente, mais enérgico, mais aberto e solícito. Não que o Deus católico não seja. Mas, você sabe, mais do que em Deus, os católicos acreditam na culpa. E dessa, aos poucos, meu primo — e eu — lutávamos e lutávamos para nos limparmos.

“Um outro elemento importante, agora para os fatos práticos que vou narrar, é que sua mãe não estava em casa. Morando ela sozinha desde a partida de meu primo, ele vinha visitar sempre que queria, tinha sua cópia da chave, às vezes fazia uma surpresa. Naquele dia, na tentativa de se dispersar de uma crise de ansiedade, ele tinha decidido sair de seu apartamento e terminar na casa da mãe o livro que então estava lendo, já que comprariam no supermercado ao lado, seu noivo e ele, os ingredientes para o jantar daquela noite. Assim, ele se mantinha longe da gaiola por umas horas. Terminava o livro. E brincava com as cachorras. Tinham um terreiro bom, aos fundos da casa, com jabuticabeiras. Ele costumava meditar muito lá nos tempos em que ainda morava com ela. Era um recanto criativo e relaxante para ele e sua mente agitada, perturbada de escritor.

“Do terceiro ponto, basta dizer que as crises de ansiedade vinham acontecendo havia cerca de um mês e meio, quase dois meses, depois de eventos traumáticos — para toda família deles, por lado da mãe — do início de dezembro. Não cabe dizer o que houve, mas tenha em mente que, sim: foi uma morte, e uma quase-morte. O que quer dizer que, para um escritor sensível e sensitivo como ele, e que tinha passado todo o ano de 2020 até particularmente bem, em comparação a diversas, inúmeras pessoas — tinha sido um ano de mortes para todos, por fora e por dentro — para alguém como ele, tinha sido a gota d’água. E à gota d’água muitos tinham chegado naquele ano, e ele, até então, não.

“Era 30 de janeiro, pelo que ele registrou em seus diários. Meu primo chegou, deixou máscara e chaves sobre a mesa, leu as instruções na embalagem vermelha e branca do pastel folhado — vinham seis, como eu disse antes —, e lá dizia que se devia levar cada um dos pastéis direto do congelador para o forno. Ele pré-aqueceu o forno elétrico por vinte minutos, que passou brincando no quintal com as cadelas. Uma era um pastor-belga; imagine um cão marrom; agora imagine que, num surto de raiva, um grafiteiro tenha-lhe despejado um jato de spray preto em todo o rosto e em todo o peitoral; e ainda continuado o trabalho esguichando um pouco nas costas e nas lombadas quando a tinta já estava acabando; esta era sua cachorra mais nova, linda e estranha, e astuta e alerta. Ele se identificava muito com ela. A outra era uma rottweiler branca e, portanto, cheia dos problemas de saúde que o cruzamento para se gerar um rottweiler dessa cor acaba provocando; seu sistema imunológico era debilitado, e seu comportamento, arredio e carente ao mesmo tempo; um olhar perdido, quase humano, como de uma donzela que carrega uma culpa que se arrasta de gerações e gerações passadas. Você não espera isso de um rottweiler, espera?

“Mas... tranquilizadora!, de um amor singular, a relação que tinha com as duas. Lembro que meu primo tinha o hábito de apertar-lhes as bochechas, as quais esse costume tornou flácidas com o tempo e, assim, ainda mais propensas e deliciosas de se apertar. Nos momentos de agitação mental, também, curioso fato, meu primo tocava a testa delas com a própria testa. Dizem que os animais de estimação são para-raios, e que adoecem ou sofrem por nós se uma energia muito ruim aponta na nossa direção. Não exatamente por essa crença, mas com um pezinho nela, creio que encostar sua testa contra as delas tinha o intuito de: ‘Por favor, tire esse peso da minha cabeça’. Sua mente não o deixava em paz. De maneira geral, como ele nem precisava me explicar, isso funcionava, ou pelo menos ajudava muito. O terreiro também era repleto de samambaias, que ele gostava de tocar e com quem conversava como se elas pudessem responder. Antes de pegar um cadeira aquela noite, ele se agarrou à jiboia contorcida de um tronco de sua jabuticabeira favorita, fincou os pés descalços no chão de terra (um caminho de alvenaria ao lado do solo fofo nos levava até a velha piscina abandonada, com o cocar de uma palmeira morta caído lá dentro) e ali rezou, pedindo a Deus, como através de um sistema de comunicação da Natureza, para que o livrasse do medo, do pânico, da angústia, dos pensamentos ruins, para que protegesse a ele, à sua família, a seu querido noivo e à sua respectiva família, e para que voltasse a sentir a vida fora da cadeia de seus pensamentos, que sentisse o todo, que se sentisse parte. Isso, somado ao contato com as cachorras, de fato o acalmou e, esperando o relógio do celular anunciar o fim dos vinte minutos de pré-aquecimento do forno, sentou-se numa cadeira ao fundo do quintal, num espaço de alvenaria a que chamavam de ‘quadra’ (seu pai planejara construir uma lá, antes da separação), a piscina inativa contrastando em sua morte com o silêncio vivo das jabuticabeiras. Sob uma luminária amarelada pregada à parede, ele enfim se dedicou à leitura, a cabeça preta de sua pastor-belga camuflada sobre a perna de seu short escuro — ah! — recém-lavado.

“A oração à árvore tinha-lhe tomado um bom tempo; logo, quando o celular despertou, ele não tinha tido mais que poucos cinco minutos de leitura plena. Retirou a embalagem do freezer, onde a tinha colocado, cortou a borda, despejou cada um dos pastéis folhados a três centímetros um do outro na forma, como as instruções haviam orientado. Manteve o forno elétrico no médio, temperatura 200º. Quando o abriu, viu a brasa vermelha de um resquício antigo brilhar forte lá dentro, pendendo de uma das barras finas da grade. Como a brasa esquecida queimava, ele não ousou tirar. O forno era bastante velho, desregulado pelo tempo de uso, mas imensamente potente, e bastante sujo de vestígios de receitas passadas. Meu primo resistiu à tentação de aumentar a temperatura até o máximo (um tanto ansioso, eu disse) e colocou a pequena bandeja lá dentro. Fechou a porta de vidro e voltou lá para fora. E lá se sentou, novamente, e leu mais.

“Ele lia muito e lia muito rápido e lia com muita ferocidade. Por quê? Porque nutria desde novo a fornalha que é o peito de um escritor. Diversas vezes, ao fim da nossa adolescência, mais ou menos naquela época em que, após um ápice de fé cristã, ele ascendeu — ou decaiu — ao ateísmo devoto, eu lhe chamei atenção porque lia com tanto desespero, com tanto afã, que chegava a reler cinco ou seis vezes a mesma página, empenhado em absorver não a história, mas o estilo de escrita, com o propósito obstinado de reproduzir a estética com perfeição. Era angustiante ver que não lia mais pelo prazer, mas pela busca, sua ambição sem precedentes de se tornar o maior e mais importante organizador da nossa língua.

“Naquele dia de janeiro, quatorze anos depois de um de meus últimos puxões de orelha, meu primo já tinha na conta, vejamos, três livros publicados. Um, particularmente, de público mais restrito, pois muito experimental, e explícito, o que tinha chocado leitores mais conservadores de nossa cidade — foi muito bem recebido pela nossa faixa etária, no entanto —, e outro bastante popular, leitura breve, pois era disso que as pessoas mais gostavam na época, de histórias ágeis, com início, meio e... Bem, o final incomodava um pouco. Meu primo tinha um fraco por finais abertos. Creio que eu mesmo o influenciei muito nesse quesito. Ele defendia que, na vida real, ‘tudo continua’, e que em sua Literatura não havia de ser diferente. Seu terceiro livro recebeu pouco holofote; uma peça de teatro. Ele era também diretor de uma dessas espécies de ‘clubes’ de intelectuais da cidade. Tinha se juntado a bons nomes da Literatura e da pesquisa por ali.

“O que você não sabe sobre meu primo é que desde a nossa adolescência ele defendia que, quando crescesse, seria um escritor (e repito os termos que, quando adolescente, usava:) ‘rico e famoso’. Não sei o quanto do que uma pessoa diz sobre si mesma a leva a ser o que pretende ser, mas ele nunca deixou de perseguir esse ideal. Seu primeiro livro foi uma saída do armário. Não que não tivéssemos consciência de sua sexualidade antes. Muito antes pelo contrário. Ele não a escondia mais desde que seus pais souberam, naquela mesma época em que lhe chamei a atenção sobre a leitura doentia e em que sua fé se transformou da água para o vinho pela primeira vez. Foi, a publicação do livro, uma ‘chutada de porta’. Percebo que ele escreveu aquele livro para mostrar sobre o que seria capaz de escrever. E, se fosse inevitável gerar um choque, para fazê-lo logo de cara. Curiosamente, seu segundo livro foi mais tímido, no estilo, e mais cativante, no efeito. Vi que meu primo se preocupara com o tom, e criou uma história doce e simbólica, imagética, que ele cuidadosamente plantou, de maneira visual, nas mentes dos leitores e dos prospectos de leitores. Foi um projeto. E que até deu certo, em escala local. Ele já era conhecido e muito admirado, como professor. E, com aquela bagagem, pôs capa e capuz de escritor por cima. Isso lhe rendeu algum reconhecimento por lá, e através de seus contatos com clubes e escritores de outras regiões ele pôde alfinetar algumas vendas em outros pontos do mapa do país. Mas meu primo — meu primo queria mais.

“Que ele queria mais, aliás, é dizer muito. Ele não queria mais. Ele queria outra coisa. Como se sua realidade, que acabei de pintar, não correspondesse, em certa proporção, à realização de seu sonho antigo, ele persistia em perseguir um ideal que, no topo de seus 32 anos, enfim veio a cair por terra. Numa crise súbita que me lembrou aquela ao final de sua adolescência, da qual eu vivamente tinha participado, meu primo começou a sentir, mais do que achar ou pensar, a sentir, que enfim era tarde demais para ter seu sonho realizado.

“Que sonho?, você me perguntaria. Ele queria ser conhecido mundialmente. E, para além do sonho de escritor de livros, nutria não o sonho, mas a certeza fantástica de que se tornaria também um grande roteirista, um roteirista hollywoodiano, desses que ganham um Oscar a cada duas ou quatro temporadas. Desde os vinte e poucos anos, alimentava um plano longínquo, como o calor ondulante na superfície do asfalto em dia quente, de retornar aos Estados Unidos e lá se fixar. Seu maior problema: ele não sabia qual ponte o levaria de simples imigrante (caso realmente se mudasse) a escritor e roteirista de renome. Ele era exímio no inglês como o professor experiente que era. E tinha recentemente escrito mais um livro, que não mencionei antes, porém em inglês, e que ele adiava publicar por adiar sua tradução. No fim, então, eram quatro livros na bagagem — este último, inédito. Mas meu primo já tinha chegado à idade em que se compreendia que meter a trouxa de roupas no ombro e dar um passo do sul ao norte não era tão simples — e nem resolvia metade dos problemas. E do sul ao norte não apenas no mapa, mas na carreira propriamente dita. A análise, a terapia, o tinha ajudado a enxergar o panorama em termos práticos. E, não pela análise, a que ele agradecia, mas pela realidade em si, ele se chocou contra um muro e estremeceu de fora até os ossos.

“Vinha se incomodando e muito, já há um tempo, com as entrevistas dadas por escritores ascendentes de sua geração. O quanto pareciam sábios!, tão mais sábios que ele. Meu primo mesmo dava entrevistas em ocasião ou outra; e, numa delas, concedida poucas semanas antes do dia fatídico que lhe narro, fora encurralado por uma pergunta que terminou de apertar o fecho que o estava sufocando: ele não sabia tanto quanto pensava saber ou quanto queria saber ou quanto esperavam que ele soubesse ou quanto, ouso dizer, sendo seu primo tão próximo, imaginava que esperavam que ele soubesse.

“E, comparando sua própria entrevista com as dadas pelos escritores de grandes editoras do país — ele havia sido publicado por uma editora menor —, aconteceu de ele simplesmente entrar em parafuso. Talvez isso soe como um surto de loucura. Mas, como mencionei, eram esses os fatores que estavam catalisando as crises de ansiedade e de angústia.

“Porque, com a morte e quase morte de pessoas queridas no dezembro anterior, eu creio que ele tinha entendido a fragilidade da vida. Para o mundo, esse axioma tinha vindo na forma de uma pandemia como aquela, de que você deve se lembrar muito bem. Para ele, o momento só tinha sido aquele. Os tempos pandêmicos, a bem da verdade, tinham lhe facilitado transformações positivas — tinha se mudado da casa da mãe, por exemplo, o que lhe fora um grande passo, em face do comodismo que nós dois herdamos da família, ou quem sabe da cidade inteira. Eu acredito que o que as fatalidades estouraram da bolha de sabão de sua realidade respingou em gotículas de insegurança quanto à sua validade intelectual e, portanto, pública.

“Um detalhe importante que não citei é que, ao entrar na casa da mãe, ele sentiu um impulso inexplicável de fechar o trinco da porta, por dentro. Sua mãe tinha lhe dito que demoraria. Não iriam se encontrar. Por mais que não houvesse por que se trancar na casa, sendo que ninguém ia precisar entrar, meu primo não conseguira resistir ao impulso. Trancara-se ali dentro. Ninguém poderia entrar, se tentasse.

“Ele tinha, sob influência das instruções, colocado o celular novamente para despertar, agora dali a 30 minutos, quando os pastéis folhados deveriam ficar prontos. Desceu novamente para o quintal, suas cachorras saltitando atrás. Sentou-se à cadeira junto à luminária da parede. E leu.

“Os rottweilers só latem na aproximação de perigo. São silenciosos na maior parte do tempo; mas aquela rottweiler branca, com toda sua debilidade e consciência (se podemos dizer assim) de sua condição vulnerável, desenvolvera o hábito de latir ao menor indício de qualquer coisa que soasse como o distante vestígio de uma invasão.

“Mas, estranhamente, ela não latiu. Estava ocupada demais raspando um buraco na terra. Quem deu sinal foi a pastor-belga — um único ladro grave e enfático em direção à casa, como quem diz: Quem vem aí? Estou aqui, hem!

“Foi isso que aconteceu quando meu primo devorava o livro da vez, que, retomando seus costumes antigos, ele absorvia e mastigava como se disso dependesse sua vida. Estava nas páginas finais, mas retornava sempre a uma anterior, relendo para protelar o fim, mas principalmente para se tornar aquela escrita. Sua pastor-belga estava virada para a casa e, olhando fixo, soltou aquele latido rouco. Um único. Meu primo levantou sua cabeça na mesma direção e fitou através dos galhos de jabuticaba as paredes brancas e o corredor externo. Se ela tinha latido assim, havia alguém à porta. Sua mãe. Tentando entrar! Meu primo correu para tirar o trinco, mas quando chegou à cozinha deparou-se com o real motivo.

“O cheiro agradável dos pastéis folhados — conferiu no celular: tinham-se passado apenas 12 minutos — perfumava os azulejos brancos do ambiente, e, ao olhar o forno, meu primo se lembrou que tinha se esquecido por um momento de que estava esperando por eles. Claro, o celular o lembraria desse detalhe. Mas ler era tanto sua prioridade, e o imergia tanto, que, se não tivesse ativado o despertador, era mais que certo — riu ele consigo mesmo — que só acordaria para os pastéis — queimando, com certeza! — quando seu noivo voltasse da missa o convocando para ir embora. Teria se passado, pensou ele com autodeboche, mais de uma hora! Como era desatento!, pensou, e por curiosidade abriu a porta do forno: uma fumaça negra se ergueu, e com ela o odor! Carvão, puro carvão!

“Maldito forno! Tinham-se passado doze minutos — apenas doze minutos! Longe dos trinta recomendados pelas instruções! Aquele forno maldito, sempre potente! Mais potente do que precisava ser! Mais rápido! E todos os seus seis pasteizinhos folhados, queimados, diminuídos a montinhos negros de fuligem empedrada.

“Com um ‘Ai!’ um tanto resignado, como quem se chama de estúpido, mas pela milésima vez numa escala frequente, correu até a porta da casa, abriu o trinco — checou lá fora: não havia ninguém. Não tinham chamado nem tentado entrar. A sua cachorra certamente tinha latido por notar que algo na cozinha estava errado. Protegendo-o. Esses animais tão bons.

“Segundo meu primo, ele teve um impulso imenso de ligar para seu noivo em plena missa; mas ligou para a mãe, e pôs no viva-voz, jogando a forma sobre a pia da cozinha. Sua mãe atendeu. Ouviu-o dizer que não se surpreendesse ao chegar em casa com o cheiro de queimado. Seus folhados haviam queimado. Todos. Ela, que sabia mais ou menos como ele vinha se sentindo naqueles dias, ouviu-o com serenidade séria, firme, e lhe disse que a grade do forno estava alta demais, que queimava todas as receitas por cima, se não ficassem atentos. Ela mesmo tinha queimado um bolo de cenoura mais cedo, só a parte superior. Mas que tinha ficado gostoso. Meu primo rebateu que seus pasteizinhos haviam queimado por inteiro. A mãe lhe disse que baixasse a grade para um nível abaixo, com mais distância do teto do forno; que meu primo comesse do bolo de cenoura, estava no micro-ondas. Feito com cenoura de verdade. Ela retirara a crosta queimada. Havia também hambúrguer congelado no freezer, pão na bandeja, coisas na geladeira. Querendo fazê-la entender quão estúpido ele tinha sido, meu primo comentou que o ruim era a frustração de ter deixado os pasteizinhos queimarem; como tinha sido idiota! ‘Não, não fica assim não’, ele relatou que sua mãe disse, entre uma leve irritação e uma triste preocupação, ‘Essas coisas acontecem. Come outra coisa’. Ele se apressou para desligar a ligação: ela dificilmente o entenderia! Com uma serenidade aborrecida, pegou cada um dos pedaços de carvão da forma e passou-os para um prato. Quem sabe o recheio tivesse sobrevivido às intempéries.

“Como um pescador abrindo uma ostra em busca de uma pérola, meu primo abriu o primeiro folhado com um corte longitudinal de faca. Surpreendeu-se ao encontrar o órgão vital intacto — o recheiozinho de frango — e camadas sadias da massa dentro da concha. Arriscou levar o frango desfiado à boca. Muito gostoso, muito gostoso, ele provou, e pensou que talvez fosse até bom que não comesse os pastéis por completo. Não se sentiria estufado na hora do jantar. Atingido por uma tranquilidade que não esperava encontrar depois da onda de frustração, daquelas em que meneamos a cabeça continuamente e tratamos a vida como uma grande piada — para conosco —, meu primo percebeu de repente que toda a sua vida estava passando por isso: a casca se queimara, mas, por dentro, ainda havia coisas boas.

“Não que fosse cair na ideia leibniziana de que este é o melhor dos mundos possíveis e de que tudo de ruim acontece por uma boa razão — não, ele já passara dessa fase! Mas, de fato, dizia ele a si mesmo, havia coisas em sua vida de que gostava. Seu trabalho, por exemplo. Que ele por muito tempo tinha tratado como algo passageiro, mas para o qual desenvolvera aptidão, mais do que tinha imaginado quando resolvera aceitá-lo: amava seu trabalho, se pensasse bem. Tinha também seu relacionamento: daqueles firmes, aderidos pela rotina de forma tão natural que suas vidas convergiam nos hábitos mais simples, mas também nas ambições mais libertadoras. E havia seus amigos; tinha seus livros; seus familiares, em plena saúde. Tinha seu apartamento, que ele decorara, singelo, com um sofá verde que o lembrasse das folhas de jabuticabeira do terreiro da mãe, uma samambaia que ele chama de Sami e uma espada-de-são-jorge para afastar os inimigos da soleira. Amava sua vida. Mas a casca queimara. A casca!, a casca! Queimara.

“Abriu cada um dos folhados. Comeu o recheio, e — o mais surpreendente — pôde também saborear algumas daquelas folhas da massa delicada miraculosamente salvas. Sentindo uma estranha consciência, como um véu removido de sua cabeça após tantas semanas — vinha esquecendo palavras; palavras básicas!; e nomes; confundira o nome da chefe, dia daqueles! —, meu primo matutou aquele insight, de que o processo pelo qual sua vida passava se refletia ali, naquele evento — fortuito? Os folhados queimados eram o retrato de sua jornada:

“Enquanto chafurdava em livros para fugir de um mundo muito menos atraente, onde ele, aventureiro nato, podia fazer muito menos do que desejava fazer; enquanto se dedicava a viver aquelas histórias escritas por tantas outras mãos, de tantos lugares do mundo e contextos; enquanto se deitava como uma esponja sobre um livro e sugava o máximo que podia do líquido ali dentro, o mundo lá fora vivia o seu mecanismo prático. Suas leis da física. Suas condições — quais eram mesmo?, ele não as tinha aprendido todas, porque estivera ocupado demais lendo. Vivendo — na teoria.

“Veja, e já havia sido um despertar em sua vida, alguns anos antes, aproximar-se e tornar-se amigo de seus amigos. Porque eles eram práticos, e naquela época, na qual acabamos, naturalmente, nos afastando, lembro de ele dizer, agradado e exasperado ao mesmo tempo, como quem fez uma descoberta tardia mas infalível, que eles o ajudaram a ver o mundo em termos palpáveis, fora do papel, como o mundo de verdade era. Perceba você então que o eremita literário que o habitava havia novamente se enconchado sobre si mesmo com o passar dos anos, mesmo após o advento dos ‘amigos práticos’; de forma que, sem deixar de tê-los por perto, ele sem muita resistência fora caindo outra vez no resguardo, como quem abdica da vida real — no que ele chamava de ‘belo, mas grande erro’.

“Assim como a embalagem do produto, que alegava que 30 minutos seriam necessários para que os folhados ficassem prontos, ele definira para si que (num futuro que ele somente não conseguia datar, mas em cuja promessa acreditava garantidamente) se tornaria o ‘escritor rico e famoso’, como quem lasca no tronco de uma árvore nomes de um amor imaginado; o grande roteirista de alcance mundial. Vivera a certeza de que tudo aquilo iria se concretizar.

“Porém se esquecera de atentar aos detalhes práticos. Confiara no que definira. E, livro na mão, esperara o tempo passar. Como se um grande despertador da vida fosse o acordar na hora certa — sem saber que ela já havia passado; que já era tarde demais. Como iria para os Estados Unidos, se tornar um roteirista de sucesso, se nem um nome grande na Literatura nacional tinha? Não que uma coisa dependesse da outra; obviamente não. Qual era, inclusive, a mais fácil? Tendo um, pensava ele, talvez fosse menos difícil conseguir o outro. Aliás, que tipo de sonho era aquele que se bifurcava? Não fora prático nem na elaboração de seu sonho! Que traços abstratos! Roteirista lá e escritor aqui. Como? Onde? Pelo quê? Por onde? Tinha seus livros — mas o que eram, no cenário nacional?

“Não que ser reconhecido localmente pelo que já construíra não fosse bom. Ele é que não enxergava como era bom, focado demais em seu sonho maior. Agora, esse sonho maior estava queimado. Não era tão grandioso quanto achara que seria aos 32 anos de idade quando tinha a metade disso. E, trabalhando tanto, lendo tantos livros, e conhecendo tão pouco do mundo de fora (era o que sentia), do que acontecia em detalhes, dos trâmites necessários para se desenvolverem projetos concretos — ele perdera de vista o fato de que tinha de ter dado a cara a tapa mais do que dera. De sair dali e buscar, quem sabe, uma cidade maior, onde se embrenhasse no milharal do meio artístico. Mas, afoito por garantias, decidira-se por viver do que lhe dava dinheiro. A geração de coaches e a geração de seus pais lhe diria que fizera a escolha certa. Mas seus sonhos lhe diziam que fizera a escolha errada. E os artistas, todos aqueles artistas que ele apreciava, lhe diziam, de seu pedestal, o mesmo. Que para eles havia sido um sacrifício e uma luta. E que assim chegaram lá. E que ele nunca chegara. Nunca chegaria.

“Porque confiara em seu talento como se talento bastasse, e achara que — veja quão irônico isso soa: como um crente, imaginara que um Deus dos Livros zelasse por ele lá de cima, acenando afirmativamente sua cabeça, dizendo ‘Segura aí, meu filho. Seu sucesso logo sai’. Que Deus era aquele?, que ele tinha criado em sua cabeça! Não havia pote de ouro do outro lado do arco-íris, e nem arco-íris. Ele não estava no caminho pois não tomara o caminho. Ele se sentara e achara que ler seria o bastante. Que ser bom seria o bastante. E, aguardando o seu lanche, viu-o queimar até só restar o que havia por dentro.

“Você pode me dizer, ‘Pois então ele devia era passar a viver bem com o recheio’. E foi o que ele fez. Raspando com as pontas dos dentes dos garfos as camadas sãs e salvas da massa docinha, ele saboreou o recheio — grato por ele, triste pela casca.

“Visualize um rei ao descobrir que mora numa casa pequena e que as torres de seu castelo tinham sido apenas imaginadas. É duro de se ver, e mais duro de se sentir. Mas ter a ‘casa pequena’ o levou a enxergar que a prática estava ali. E ele precisou sair deste pequeno grande cômodo e olhar a estrutura por fora e confirmar ‘É’, com as mãos na cintura, ‘as torres não existem’. E, com-a-mão-na-massa, construir aos poucos seu verdadeiro castelo. Do topo de seus jovens 32 anos. Digo ‘jovem’ porque: sempre se acha que se é velho demais, se não se toma cuidado. O rei, no fim, era apenas um trabalhador. E era hora de trabalhar.”

Na poltrona oposta, o outro homem trocou a posição das pernas cruzadas. A fumaça se esquivou dele como que tomando um leve susto, antes de voltar a dançar misteriosamente no ar.

O senhor ao lado do rádio estendeu a mão e girou o botão do volume. A radionovela, tão em voga outra vez depois de mais de um século, preencheu com um chiado os ouvidos dos dois. Um personagem masculino, até então discreto na trama, finalizava uma fala: “... onde você estaria, se não estivéssemos juntos?”

A voz do narrador retornou sombria: “Ela não tinha palavras para aquilo.”

E, neste momento, meu primo abriu um sorriso, e acompanhou em voz alta a fala da personagem feminina: “Não aqui”, disseram os dois juntos. “Não ali, tampouco. Talvez em lugar nenhum.

Meu primo sorriu.

 

31 de janeiro de 2021
Sabará, MG



Foto: Jonathan Fidelis

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Comentários

  1. Caro Bernardo, me surpreendo sempre ao ler os seus textos, livros, os seus trabalhos autorais, eu diria! Você nos faz imergir em seu mundo de uma forma leve e repleta de detalhes que nos transmite inúmeras sensações. Espero ter a oportunidade de ler muitos trabalhos seus ainda e me encantar ainda mais! Sucesso! Da sua fã e amiga Di!

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. "As torres não existem", temos que construir nosso castelo.
    Você e essa forma tão peculiar de escrever, me encanta.
    Selma

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  4. Daqui posso ouvir o primo trancando a porta, mexendo na bandeija gelada de pastel, o latido rouco da cadela e cheiro de queimado... Sua narrativa é intimamente sinestesica que nos prende em sensações tao simples,mas ao mesmo tempo ímpares...Quantas vezes sofremos, nos indignamos e nos esquecemos que, de repente, precisávamos apenas da testa amiga de nosso pet...Ah, primo... Quantos pastéis ainda jogaremos fora sem a coragem de abri los pra tentar salvar o recheio da casca queimada? Bernardo,sua escrita é notável! Você é uma promessa! Bjim, Glaura

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    1. Glaurinha! Sua resposta é um trabalho por si só! Obrigado!

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  5. Estou fascinada com seu conto. Me vi dentro da narrativa. Continue criando, escrevendo, mostrando pra gente sua capacidade de se expressar. Como sua mãe só tenho a agradecer por vc existir. Estarei sempre aqui pra não deixar seus"pastéis" queimarem e se queimarem, faremos outros. A vida é bela e vc tem muito tempo pra vivê-la. Conte comigo sempre! Te amo muito! Bjo.

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  6. Sim “ Abriu cada um dos folhados. Comeu só o recheio “... como me é comum tantas vezes o fazer! Como se fosse a vida o estar no dentro e se expondo no fora! Grata pela experiência sensorial! Beijinhos, com e sem folhas!

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