CONTRIBUIÇÕES IMORTAIS: "Desabafo musical", crônica de Ana Maria Guerra Machado
DESABAFO MUSICAL
ANA MARIA GUERRA
MACHADO
Membro-fundador da Academia de Ciências
e Letras de Sabará
Cadeira 8. Patrono: Benedito Machado Homem
Então tá. O presidente da Academia disse: “quero
seu texto na minha mesa às 16 horas”. Tudo seria perfeito, se eu soubesse sobre
o que escrever! Totalmente sem inspiração. Encontrar um assunto que me renda um
texto interessante é muita pressão. Ontem, teve um programa com um grande
escritor da minha terra, todo mundo está envolvido com a maravilha que foi. Eu
queria escrever como ele! Meu Deus, no meio do programa, uma poetisa amiga criou
um Haikai! Assim, de repente! O que acontece com esse povo? Ficou impressionada
como tiram tanta beleza do acaso! Consigo não.
Talvez ligar o rádio, ou a versão moderna deste, me
ajudaria. Depois da invenção da Internet, não preciso mais ficar naquela
caixinha rodando botão pra lá e pra cá pra sintonizar... Delícia é apertar o
“play” e esperar a mágica acontecer. A grande dificuldade é encontrar dentro
deste vasto mundo do aplicativo musical alguma coisa que, na minha idade, seja
audível e seja novo! Na dúvida, coloca na playlist “As melhores de 2021”. A
primeira música... possui seis frases e 32 vezes a repetição da sílaba “pa”. Que
que é isso??? A segunda é um complexo de frases gramaticalmente desordenadas, e
me deu uma sensação terrível de pânico, porque meus filhos estão no ensino
fundamental e, com certeza, devem escutar isso, e vão aprender errado! A gente
peleja com os filhos para assistir e participar de aulas de Português e, de
repente, alguém gravou isso e está entre as músicas preferidas do ano de 2021.
A terceira grita em seu refrão que “é melhor ser piranha do que ser infeliz”!
Até parei e escutei a letra pra tentar entender a lógica. Nenhuma. E assim, fui
passando os pedacinhos das próximas! Jesus, aproveita a quaresma e ajuda essa
juventude a perceber que o mundo e a vida são muito mais que “o colchão ou o
litrão”!
A música popular brasileira sempre foi um estilo
que trazia em suas letras pura poesia, mas nunca uma poesia simples. Eram
sempre muito sofisticadas e rebuscadas. Havia aqueles que traziam uma bagagem
dos anos 60, carregada de teor político-social, onde tentavam falar o que não
podiam, mas mesmo assim o diziam, “...em caras de presidentes, em grandes
beijos de amor, em dentes, pernas, bandeiras, bombas e Brigitte Bardot...”
ou “...cálice, afasta de mim este
cálice, Pai. De vinho tinto de sangue...”. E aí, a garotada mais instruída
fazia daquilo um hino e saía cantando pelas ruas, não mais como na década
anterior, mas ainda sob o peso da repressão política. Mesmo assim, nesta leva,
a poesia romântica era aplicada a todo momento, por cantores “velhos de guerra”
e também por aqueles que estavam chegando nesta época mesmo: “foi assim... com
a roupa encharcada e a alma repleta de chão, que muita gente boa pôs o pé na
profissão de tocar um instrumento e de cantar, não se importando se quem parou
quis ouvir..”, “você me pergunta pela
minha paixão, lhe digo que estou encantado com uma nova invenção, eu vou ficar
nesta cidade, não vou voltar pro sertão, pois eu vejo vir vindo o sopro da nova
invenção...”. Eram letras dignas de serem estudadas e desmembradas dentro de
salas de aulas universitárias, embora naquela época ainda não fosse possível!
Mas os jovens tinham esta bagagem cultural, eles conseguiam ouvir e entender
exatamente o que o artista queria dizer. Exigia-se, muitas vezes, um conhecimento
prévio de diversos assuntos para perceber a analogia proposta pelo artista.
“... Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas, vivem para seus maridos,
orgulho e glória ...”, “...que tal nós dois, numa banheira de espuma: El cuerpo
caliente, um doce forniente, sem culpa nenhuma...”. Os festivais estavam
repletos de talentos explosivos, que passavam horas tentando ser inteligentes
em suas obras. “...o mar passa saborosamente a língua na areia. E bem
debochada, cínica que é, permite, deleitada, esses abusos do mar... por trás de
uma folha de palmeira a lua, poderosa, mulher muito formosa, vem nua...”. Ou
surpreendente em sua execução, como foi o caso de Elis Regina, no palco! Porque
o público exigia isso. O público exigia, inconscientemente, que sua emoção
erudita fosse desafiada.
E a música brega??? Pois é. Como nem todo
brasileiro tinha acesso à cultura que lhe permitisse ter o raciocínio
desafiado, havia aquelas músicas que o saciavam. Entretanto, apesar da
linguagem simples, fácil e clara, não deixava de ser também uma poesia,
daquelas que tocam à alma. Porque isto é a música, uma composição de melodia e
letra que tocam a alma, que despertam sensações e descrevem sentimentos. “...eu
queria ter uma casinha branca de varanda, um quintal e uma janela para ver o
sol nascer...”, “...não, eu não consigo acreditar no que aconteceu, era um
sonho meu, nada se apagou. Eu já não consigo viver dentro de mim e viver assim
é quase morrer...” ou “... já cheguei a tal ponto de me trocar diversas vezes
por você, só pra ver se me encontro...”.
E, assim, adentramos os anos 80, com a música
brasileira suplantando a americana em qualquer rádio. A geração nascida no
final de 60 e início de 70 estava incrivelmente inspirada e intelectualmente
preparada para conseguir digerir a música americana e transformá-la em ritmo
próprio. Foi a melhor época do rock nacional; todos os dias nasciam grupos de
rock, com personalidade própria e poesia em suas músicas. A herança foi bem
empregada. A minha geração conseguia ler Dom
Casmurro e ouvir Titãs ao mesmo tempo! Conseguíamos cantar em coral Gounod
e Milton Nascimento, entendendo a emoção que carregavam as duas melodias! Os
festivais foram acabando aos poucos, mas os artistas eram tão bons que
sobrevivem até hoje! Porque a música até esta data era poesia, e poesia toca a
alma, e tudo que toca a alma fica para sempre!
Nos anos 90, alguma coisa se fez. Mas acredito que
a maior marca musical da época foi a invenção do Axé Music. Mas não essa coisa
que somos obrigados a ouvir em todos os carnavais. Ainda havia a preocupação de
investir com responsabilidade naquilo que seria cantado para o povo, “...eu
queria que essa fantasia fosse eterna... e viver será só festejar...”, “... a
cor dessa cidade sou eu, o canto dessa cidade é meu...” Eu disse a maior, e não
a melhor! Foi o fim do carnaval. Ou o início de um novo capítulo carnavalesco.
Mas uma coisa é certa: acabou a fantasia! Daí pra cá, não se aproveita muita
coisa musical.
Nesta época, o Brasil teve também uma grande queda
na educação. Não conheço profundamente a história da educação no país, mas é
transparente a sua queda cultural. As pessoas leem cada vez menos, o jornal que
resiste no papel é um tabloide, as bibliotecas estão virando ponto turístico,
os cursos de licenciatura estão com os dias cada vez mais contados, a melhor
enciclopédia se tornou o Google, as cópias substituíram as pesquisas, e o
principal é que raramente um jovem consegue ter uma visão crítica de alguma
coisa. Estamos vivendo um período de necrose musical. Com toda certeza, reflexo
desta quebra educacional. Pouquíssima coisa de qualidade está no mercado. E,
mesmo assim, me lembro de raríssimos compositores jovens nesta atualidade.
Muitos desses jovens filhos das gerações passadas, trazendo o que aprenderam
com seus pais, como o filho do Fábio Júnior cantando Lupicínio Rodrigues, ou a
filha de Martinho da Vila, Martinália, ou a filha da Zizi Possi, ou ainda a
filha de Elis Regina e o filho do João Nogueira, com um trabalho bem
interessante, com poucos adeptos da geração século 21; seu público mesmo é a
minha geração. Não mais apresentações de rock, onde se podiam ouvir os acordes
da orquestra. Gente, as bandas de rock tocavam acompanhadas por orquestras!!!
Imagina se um pagodeiro desses que está na moda, ou algum funkeiro sabe sequer
segurar um violino. E o brega está se vestindo de sertanejo universitário. “...
Se você acha que vai me ganhar com esse teu corpo / acertou de novo! Cê acha
mesmo que pra vida toda eu quero só você / acertou na mosca, bebê...”. Será que
é só isso que os universitários conseguem fazer? Ou estão apenas aproveitando a
fase comercialoide da tendência atual? Sertanejo mesmo... ixi... sumiu!
Neste último ano pandêmico, assisti a muitas
entrevistas com cantores e músicos, e os ouvi dizer que tocavam diversos
instrumentos. Veja bem: até o Lobão, aquele louco, sabia tocar qualquer
instrumento, estudou música desde criança. E Paulo Ricardo, do RPM, foi estudar
música em Londres! Daniela Mercury, cantora de axé, aprendeu canto lírico no
conservatório, em Salvador... e, assim por diante, percebe-se a grande
diferença!
As trilhas sonoras das novelas, até antes da
pandemia, estavam resistindo bravamente a esse desmoronamento musical. Sua compilação
ainda trazia o que há de bom na música, apesar de sua seleção trazer,
praticamente, remakes das antigas composições, cantadas em novos arranjos, mais
equalizados, tecnologicamente mais modernos. Mas é uma forma de levar ao povo
brasileiro uma sonoridade audível.
Fico pensando se não é por isso que a música
religiosa tem se destacado tanto. São músicas melodiosas, cheias de poesia, que
falam ao espírito. Preciso acreditar nisso, porque meus filhos estão chegando
agora.
Fiquei deprimida. Não quero mais escrever hoje. Meu
desabafo é o que irá para a mesa do presidente às 16 horas. Vou ali verificar a
playlist dos meus filhos adolescentes.
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Deliciosamente musical e consciente! Que delícia crítica e sonora!!! Para minha versão como músico e educadora musical: grata pelo banquete desabafo!
ResponderExcluirParabéns! Eu assino em baixo, concordo plenamente com você. Estamos vivendo um momento de pane musical. No entanto, ainda tem uma garotada que não faz sucesso mas escreve algumas letras poéticas por aí. Aprendi com minha filha de 18 anos. Mãe professora educa filhos críticos. Kkkk
ResponderExcluirFantástico, Ana! Que passeio pela nossa música... Com certeza, todos os leitores hão de concluir : "nossa, tudo que eu penso sobre música , a Ana, brilhantemente, condensou em seu texto". Parabéns! Silas Fonseca
ResponderExcluirConcordo plenamente com você Ana, seu desabafo crítico nós remete aos nossos jovens e sua bagagem musical.
ResponderExcluirExcelente texto, Ana Maria! Fui lendo e escutando sua voz nesse "desabafo" rsrsrs...Forte abraço! Glaura
ResponderExcluirObrigada, querida! Kkkkk e vc conhece bem, como eu disparo a falar qdo estou indignada! 😃
ExcluirImagina se você estivesse a fim de escreve! Conseguiu resgatar o pensamento de um montão de gente que ainda sonha com uma "viola enluarada."
ResponderExcluirescrever*
ResponderExcluirescrever*
ResponderExcluirQue delicia Ana!!! Saudade da boa música! Soubemos aproveitar e saborear!!! Amei!!!
ResponderExcluirAna, tudo o que se viu e se vê agora, você decifrou. Amei seu desabafo, penso igual.Você traduz lindamente seus pensamentos em palavras. Parabéns, quero mais.
ResponderExcluirSelma