"A Música de Concerto dos Séculos XX e XXI – Um itinerário de partida", de Lucas Duarte Neves

Membro-fundador da Academia de Ciências e Letras de Sabará
Cadeira 4. Patrono: Antônio Pinto Júnior


A Música de Concerto dos Séculos XX e XXI – Um itinerário de partida


A música conhecida hoje como “Clássica”, ou a “Música de Orquestra”, faz parte do cotidiano das pessoas, talvez mais do que elas imaginam. Seja nas trilhas sonoras de filmes, séries, ou numa reprodução de chamada em espera. Mesmo que não se saiba profundamente, a maioria das pessoas já deve ter escutado alguma peça de Mozart, Beethoven, Vivaldi... Porém, é quase uma unanimidade que a Música de Concerto dos séculos XX e XXI é totalmente desconhecida do grande público e que sua importância artística é bastante ignorada.

Além disso, a sonoridade dessa estética musical dos dois últimos séculos pode parecer muito estranha em um primeiro contato. Há uma reestruturação das funções harmônicas e melódicas, uma valorização da textura sobre a estrutura temática; e houve, ao longo do século XX, muitos movimentos de vanguarda que propuseram rupturas com os modelos de composição anteriores. Por isso, foi se desenvolvendo um grande distanciamento da Música de Concerto do Século XX em relação ao público em geral e em relação à música popular.

Contudo, quando nos propomos a ter uma aproximação com este tipo de Música, com “ouvidos abertos” a novas experiências, podemos nos surpreender de maneira positiva e, consequentemente, conhecer uma outra forma de escuta musical. Assim, gostaria de propor aos leitores uma pequena experiência de escuta, com o intuito de iniciar uma viagem por esse tipo de repertório, sugerindo e explicando um pouco sobre peças que considero importantes nesse período da História da Música, cujas sonoridades podem ser assimiladas com menos estranheza.

Antes de iniciar nossa viagem musical, gostaria de esclarecer sobre o termo “Música Clássica”, que muitas vezes é usado para nomear qualquer tipo de música que seja tocado por orquestras ou grupos afins. O termo, na verdade, refere-se à Música que era praticada na Europa durante os séculos XVII e XVIII, tendo como alguns de seus principais expoentes os compositores Haydn, Mozart e, no final do período estético, Beethoven. Dessa forma, quando se fala em “Música Clássica”, tecnicamente, estamos nos referindo apenas à Música desse período.

Atualmente, é mais apropriado usar o termo “Música de Concerto”, para denominar o gênero musical das peças que são tocadas por Orquestras, Corais e Bandas Sinfônicas. Assim, não se adentra no problema estilístico, podendo-se englobar uma gama maior de obras no mesmo conceito, sem muita querela teórica.

Sendo assim, vamos iniciar nossa pequena viagem! Apresento abaixo três peças da literatura musical do período, as quais, na minha opinião, podem ser usadas para uma introdução ao universo da Música de Concerto do século XX. Farei um breve comentário sobre as obras e deixarei abaixo os links dos vídeos de cada peça para que você possa escutar e conhecer essa sonoridade diferenciada.


The Unanswered Question (A pergunta sem resposta) – Charles Ives - Estreada em 1946

Charles Ives era um compositor Norte-americano, que viveu entre 1874 e 1954. Sua obra não é tão difundida, mesmo no âmbito da Música de Concerto, sendo que “The Unanswered Question” é uma das poucas que são conhecidas dentre as suas composições. A proposta do compositor para essa peça é muito criativa e ao mesmo tempo profunda. Inicio nossa viagem com essa obra por se tratar de uma peça que é contemplativa, ao mesmo tempo que inquietante. Ela se inicia com uma aura sonora, com notas longas e suaves executadas pelo naipe das Cordas, como se retratasse uma paisagem calma e serena. Essa aura permanece por toda a peça. Sobreposta a essa serenidade, há um tema musical, tocado pelo trompete, que sugere um tipo de pergunta, uma inquietação. A partir disso, desenvolve-se uma conversa entre o que é tocado pelo trompete e o que é tocado pelo naipe das madeiras (Flautas, Clarineta e Oboé). As madeiras tentam responder à “pergunta” feita pelo Trompete; contudo, essa tentativa de resposta nunca é satisfatória. O Trompete refaz a “pergunta”, várias e várias vezes, e o naipe das Madeiras, sempre sem sucesso, tenta responder, de forma cada vez mais inquieta e angustiada, e, por fim, a pergunta permanece sem resposta.

Há todo um embasamento filosófico aplicado a essa peça, mas, inicialmente, a proposta é introduzir a sonoridade dela, uma nova forma de escuta. Vale a pena, porém, aprofundar-nos um pouco sobre o contexto da obra em um momento posterior. 


Cirandas nº4 – Heitor Villa-Lobos – 1926

Não podia deixar de citar aqui o compositor brasileiro Heitor Villa-Lobos. Apesar de ter grande produção na Música de Concerto, Villa-Lobos sempre foi muito próximo às tradições musicais brasileiras, principalmente no que diz respeito ao Samba e ao Choro. No âmbito intelectual, foi um dos compositores que se apresentaram na Semana de Arte Moderna, em 1922, evento clímax do movimento Nacionalista, que tinha como uma de suas premissas a valorização da cultura nacional nos âmbitos artístico, acadêmico e intelectual. Foi, mais ou menos, nesse contexto que surgiram as 16 Cirandas compostas por Villa-Lobos, peças para Piano solo que usam temas folclóricos, porém com um arranjo musical que direciona a escuta para um outro caminho. Na ciranda nº 4, especificamente, o compositor usa dois temas de canções tradicionais: “O Cravo brigou com a Rosa” e “Sapo Jururu”.

Desde o início da peça é possível perceber uma rítmica muito movimentada, com um gesto musical confuso, no qual o tema da canção “O Cravo brigou com a Rosa” é colocado em meio a um emaranhado de notas de ritmos (realmente é possível perceber uma briga aqui...). Na segunda parte da peça, há uma pequena calmaria, onde Villa-Lobos harmoniza de forma diferenciada o tema da canção “Sapo Jururu”, direcionando, posteriormente, ao retorno do tema inicial e de toda aquela profusão de notas e ritmos da primeira parte.

Ouça a peça e tente reconhecer as melodias dessas canções com uma roupagem completamente diferente.


Lux aeterna – György Ligeti – 1966

Ligeti é um dos compositores mais conceituados dentro do contexto da Música de Concerto do Século XX. O compositor húngaro viveu entre 1926 e 2006 e tem uma grande quantidade de obras cujas sonoridades são inovadoras, tendo grande destaque no âmbito musical acadêmico. A obra “Lux Aeterna” (do latim “Luz eterna”) é uma peça composta para coro à capela dividido em 16 vozes (para se ter uma comparação, normalmente as peças para coro são divididas em apenas quatro vozes!). O texto da peça é retirado da Missa Requiem (missa para defuntos) original da igreja católica em latim, cuja tradução pode ser a seguinte:Que a luz eterna brilhe sobre eles, ó Senhor, com teus santos na eternidade, pois és misericordioso. Concede-lhes o descanso eterno, ó Senhor, e que a luz eterna brilhe sobre eles”.

Esse contexto religioso e fúnebre é o pano de fundo para a construção da sonoridade da peça, que, através de uma textura sutil, sugere um transe celestial, como se estivéssemos entrando no desconhecido, guiados por uma luz tênue que se reflete ao nosso redor. Uma aura angelical pode ser imaginada, ao mesmo tempo que a angústia da morte, sugerida pelo próprio texto da obra, cria um amalgama de luz e sombra.



Diante dessas três peças, acredito que é possível fazer uma breve introdução às linguagens musicais que foram praticadas na Música de Concerto do Século XX e XXI. É interessante perceber, também, que muito da sonoridade da música desse tempo é um reflexo dos ruídos da vida comum, das guerras do período, do caos das grandes cidades... tudo isso é transformado em arte e em linguagem musical pela criatividade dos compositores e compositoras contemporâneos. As linguagens da Música de Concerto Contemporânea são uma representação da nossa vida, sem o compromisso com o “belo” que na maioria das vezes não mais é evidente no cotidiano, buscando nos vários ruídos sonoros (que já nem nos chamam atenção devido ao grande caos sonoro que vivemos nas cidades) uma inspiração para uma nova forma da Música.

Obviamente que esse é um pequeno recorte do enorme universo que é a Música de Concerto dos séculos XX e XXI, mas acredito que ouvir essas peças é um primeiro passo para adentrar nesse mundo musical tão imagético. Boa escuta!



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Comentários

  1. Parabéns por excelente texto!
    Ouvidos abertos sempre!
    Música transforma, transporta, transborda!
    Bravo!

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  2. A linguagem musical é fascinante! E identificar os conceitos através da sonoridade foi muito interessante e educativo. Parabéns pelo artigo! Darsoni

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