"A marrecada e o Festival do Ora-pro-nóbis", de Silas da Fonseca

Membro-fundador da Academia de Ciências e Letras de Sabará
Cadeira 5. Patrono: Armando de Paula.


A MARRECADA E O FESTIVAL DO ORA-PRO-NÓBIS

Tudo começou quando, não se sabe como, veio bater à porta de D. Maria Torres, minha mãe, um argentino de nome Hernandez, com sua mulher e filho. Vinham  não me lembro de onde e diziam estar com muita fome, pedindo à D. Maria que lhes preparasse alguma coisa para comer. Vinte minutos depois a pequena família estava à mesa se regalando. De vez em quando o argentino parava por um instante e dizia: “hummmmm, delicioso!” Terminado o almoço, quiseram saber se havia sobremesa. Havia. Foi um pote e meio de doce. Tomaram café, deitaram no banco e dormiram um bom sono. O privilégio do sofá coube ao hijo de nombre “Pablito”. Quando acordaram, disseram à D. Maria que sonharam com a comida dela, e que ela era uma santa e coisa e tal. A cozinheira sentiu-se tão agradecida que resolveu não cobrar os seus serviços, o que lhe valeu outra enxurrada de elogios e a promessa de breve retorno. Começaram a frequentar a casa uma vez por mês. Depois, quinzenalmente e, por fim, toda semana. Sempre traziam algo. Um presente, um tipo de carne, coisas desse tipo, a título de compensação, já que minha mãe insistia em não cobrar pela estadia. Hernandez dizia ter uma firma em Belo Horizonte, e que trabalhava com envelhecimento de móveis para decoração de ambientes. Certo dia, enquanto palitava os dentes, Hernandez teve uma ideia que considerou brilhante: Chamou minha mãe e foi logo dizendo: “D. Maria, tive uma ideia assim, fantástica. Se a senhora permitir, vamos criar marrecos aqui no sítio. Eu trago os marrequinhos, uma ou duas dúzias, e a gente solta eles por aí. Com tanto terreno e tanta água não vai precisar nem de ração. Quando eles estiverem no ponto para a panela a gente almoça eles e traz outra turminha. Assim, nóis num fica sem graça de ficar comendo de graça aqui todo fim de semana”. D. Maria, verdade seja dita, não achou muita graça na proposta, mas vai discutir com argentino... Acabou aceitando. Daí a uma semana chegou Hernandez em uma caminhonete abarrotada de caixas de papelão cheias de “marrequinhos”. D. Maria assustou-se:

— Hernandez de Deus, ocê tá doido?

— Sabe o que é, D. Maria? É que cheguei ao mercado e, por acaso, os marrecos estavam em oferta, aí eu aproveitei e comprei logo mil e quinhentos bichinhos. Mas a senhora só vai entrar com o terreno. O resto é por minha conta. Dentro de quatro meses teremos 1.500 bichos pra vender para restaurantes em Belo Horizonte. Vamos ganhar um bom dinheiro, a senhora vai ver.

Minha mãe não quis tomar sozinha a decisão de aceitar aquele desatino e reuniu os filhos. Um dizia sim, outro dizia não, outro não queria se meter nem com sim nem com não. No fim, improvisou-se um cercado no fundo do quintal, desviou-se para ele uma bica d´água e descarregaram-se os marrecos.

Toda semana Hernandez aparecia com a mulher e o filho, trazendo ração pros marrecos. Muitas pessoas no bairro ficaram sabendo da empreitada e para lá se dirigiam só para ver a marrecada.

Certa vez, Hernandez disse ter ido ao lote e que só contou mil quatrocentos e sessenta e cinco. Com certeza, algum bicho do mato tinha achado graça na criação e dela se servia para o autossustento. Montou-se então uma barraca próximo ao local e cada noite algum dos filhos montava guarda. Dormir ali era impossível. Bastava o barulho de uma folha caindo no chão pra bicharada aprontar uma algazarra de incomodar falecido. E, assim, corriam -se os dias e, de maneira mais lenta, aumentava-se o peso dos marrecos.

Quando os bichos atingiram mais ou menos um quilo de penas e carne — aliás, mais pena do que carne, diga-se de passagem —, o Hernandez não apareceu no fim de semana. Pensamos ter acontecido algum imprevisto. Fomos à cidade, compramos — fiado — metade da quantidade de ração que Hernandez costumava trazer. Quando ele chegasse, com certeza, acertaria as contas com o comerciante. Os marrecos não concordaram muito com a quantidade de ração... Em poucos minutos deram conta dela e arrumaram uma zueira de fazer doer ouvido de surdo. Ademar ouvira falar que os bichos gostavam muito de “pau-de-bananeira” bem picadinho. Fomos à luta. Picamos dois sacos de pau-de-bananeira e jogamos na arena. Cinco minutos, e cadê comida. Os bichos tanto comiam quanto cagavam, e não havia comida que chegasse. No outro fim de semana, Hernandez também não apareceu. Foi batendo o desespero. Em nós e nos marrecos. O telefone de Hernandez não atendia. A gente não tinha o endereço dele, o dono da casa de ração já não queria mais vender fiado... uma tragédia! Mas fosse explicar essas razões pros marrecos! Eles nun tavam nem aí! Se alguém aproximava do cercado, eles pensavam estar vindo comida e já começavam entre si uma guerra física para garantir os primeiros lugares, aos gritos de “arrrreda, arrrreda arrrreda...”, uma loucura. No sítio não ficou uma bananeira de pé. E nada de Hernandez.

Certo dia, quando o pior já estava por acontecer, ao ler um jornal em meu serviço na Prefeitura, dei com um classificado anunciando a venda da firma de Hernandez. Tava lá o endereço do gringo. Pedi licença pro chefe, corri até em casa com o jornal na mão, chamei Ademar, e nos mandamos pra Belo Horizonte no encalço do argentino. Lá chegando, fomos atendidos pelo dito-cujo, que custamos a reconhecer. Magro, barbudo, cabisbaixo, Hernandez nos convidou a entrar. Sentamos, e ele mesmo puxou a conversa.

— Eu acho que já sei por que vieram. Eu queria ter ido lá no sítio, mas fiquei com vergonha de aparecer para D. Maria. Dois funcionários me “levaram no pau” e a minha firma foi fechada. Perdi tudo que tinha. Até o carro eu perdi. Sei que vocês não têm culpa, mas o quer posso fazer? Os marrecos já devem estar com um peso que dê pra vender. Vocês podem fazer o que quiser. Eu não quero nada daquilo que investi lá. Enfiem os marrecos onde acharem melhor; eu não tenho mais condições de ajudar.

Saímos de lá piores do que chegamos. Cheguei a comentar com Ademar: Pra “enfiar os marrecos” aonde a gente quiser, Hernandez tinha de estar presente. Agora era chegar em casa, dar a má notícia e ver o que fazer com as contas de ração a pagar — e o mais difícil: ver o que fazer com mais de mil marrecos magros e famintos. Em razão da falta de uma alimentação sadia, os bichos estavam que era pura pena e osso. Não serviam para ensopado.

Demos a notícia pra minha mãe. Ela abaixou a cabeça e perguntou pra si mesma:

— E agora?

Nos dias que se seguiram, cortamos o resto das bananeiras de pé, encomendamos restos de verduras em todos os supermercados da cidade e fomos enganando a fome dos marrecos, que, a essa altura da situação, já eram moeda corrente na família. Minha dizia:

— Ademar, pega três marrecos pra pagar a passagem e vai na rua buscar as verduras.

— Ernane, pergunta Sô Zé Raimundo quantos marrecos ele quer por aquelas bananeiras dele.

Além desses procedimentos estratégicos, eu escrevi em cartolina e afixei no portão do sítio um cartaz com os seguintes dizeres: Vendem-se marrecos, a prazo. R$1,00 cada. Quem comprar um ganha outro. Um grande e providencial comprador foi o engenheiro agrônomo da Prefeitura, que adquiriu 150 marrecos a prazo, aliás, prazo este que se estende até a presente data uma vez que o homem sumiu sem assumir a dívida. Em todo caso, eram 150 bocas, ou melhor dizendo, 150 bicos a menos para alimentar.

Minha mãe nunca foi tão generosa. Ela ganhava um “bom dia” e dava logo dois marrecos pro simpático interlocutor. Se alguém lhe pedia a bênção, isso valia três marrecos. Comadre que lhe fosse fazer uma visita nunca saía sem um par de marrecos em cada uma das mãos... E assim chegamos a 700 marrecos — que ainda eram difíceis de manter; sem falar nas contas a pagar pro moço da ração.

Foi quando quis a providência divina que minha mãe fosse convidada para montar uma barraca de tira-gosto no 1º Festival da Cachaça de Sabará. A princípio, desorientada que estava, quase disse não. Mas lembrou-se da marrecada, do ora-pro-nóbis verde e farto por sobre os muros do Pompéu, e exclamou: “ORA-PRO-NÓBIS COM MARRECO!”

Na sexta-feira, primeiro dia do Festival, nada sobrou dos trinta e cinco marrecos preparados com ora-pro-nóbis. No sábado e domingo, foram mais de quatrocentos marrecos. E só não se vendeu mais por falta de tempo, pois, enquanto houve Festival, a barraca de D. Maria esteve lotada.

Pagas todas as despesas, e limpo o honrado nome da família, o que restou de marrecos no quintal, pouco mais de cem, foi alimentado com ração de primeira para aguardar o festival de julho, para o qual o Prefeito, pessoalmente, tinha dito à minha mãe que não poderia faltar o ora-pro-nóbis com marreco.

No festival de julho minha mãe voltou à praça Melo Vianna e repetiu o mesmo sucesso. Dessa vez, antes do fim do festival, já teve que apelar pros frangos, pois, como disse D. Maria, “os marrecos não deram nem pra meia missa”.

A partir de então o ora-pro-nóbis passou a ser prato obrigatório em todas as festividades. A princípio, os donos de restaurantes da cidade pensaram tratar-se apenas de um modismo, coisa passageira. Em pouco tempo mudaram de ideia e trataram de incluir o ora-pro-nóbis no seu cardápio.

Nos fins de semana, era comum que famílias inteiras se dirigissem ao Pompéu procurando minha mãe e pedindo que ela fizesse o ora-pro-nóbis com marreco. Assim, a varanda da casa virou restaurante nos sábados e domingos. Daí a instalar um restaurante de verdade “foi um pulo”. Vendo todo aquele movimento, eu propus à minha mãe e ao meu irmão, que se encontrava desempregado, que aproveitassem um cômodo perto do Moinho e fizessem o comércio. Sugeri que o nome fosse “Moinho D´Água”, pois o Moinho ali existente era o único da região — devia ter mais de um século de existência e ainda funcionava normalmente, podendo moer o milho e fornecer o fubá para confecção do angu a ser consumido com ora-pro-nóbis.

Dito e feito. Em dois anos o restaurante já atraia um público de mais de 300 pessoas nos sábados e domingos. Já não havia marrecos, mas todo mundo queria conhecer a “D. Maria dos marrecos”.

Depois veio mais um restaurante em Pompéu. Tudo em nome do ora-pro-nóbis. E a fama foi assim, crescendo, até que, em l997, o Prefeito Wander Borges compreendeu a importância dessa folhinha suculenta e gostosa e convidou a comunidade do Pompéu a ser parceira de sua administração na criação do Festival do Ora-pro-bobis. A comunidade topou na hora. Tava feito! O Festival se realizou com resultados muito além do esperado e, a cada ano, a festa atrai mais e mais gente. Gente daqui, gente dali, gente de onde a gente nem pensa. O ora-pro-nóbis venceu!

Hernadez sumiu. Talvez nem saiba que seus marrecos e nossas mirrecas tenham gerado uma das mais lindas festas do calendário da cidade.

Mas, de tudo isso, o mais importante é perceber que os marrecos foram tão somente coadjuvantes, personagens secundários dessa história. O grande protagonista é sem dúvida o ora-pro-nóbis, que continua desfilando o seu sucesso nos palcos da gastronomia mineira, com mais propriedade no Pompéu, uma vilazinha com um lindíssimo paisagismo, a cinco quilômetro do centro Histórico de Sabará.


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Comentários

  1. Ler suas histórias, Silas, é saber da nossa cultura, nossa gente, coisas de cá. Parabéns, sempre!
    Selma

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  2. Que delicia ler isso!! Dá vontade de comer ora pro nobis!! Bjs. Cacau

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  3. Delícia de texto e história, em todos os sentidos!!!! Sou seu fã, Silas!

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  4. Silas,
    Ler a história do festival a luz dos seus olhos é um presente! Que lindo texto! Que delícia de leitura! 🦆🦤🦆🦤🪿🪿🪿🦆🦤🦆🦢🦤🦢🦆🦢🦤🦢🦆🪿🦆🦢🦤

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