"Menino de vó", de Rodrigo Cabral
Membro-fundador da Academia de Ciências e Letras de Sabará
Cadeira 15. Patrono: Joaquim Sepúlveda
MENINO DE VÓ
Dizem que criança criada com vó é mimada. Será mesmo?
Dona Maria, a mãe do meu pai, era
séria e, às vezes, brava. Não gostava de barulho e muito menos de bagunça.
— Esse menino adora mostrar as
canjicas — dizia ela sobre meu sorriso, num tom que soava crítico. Eu achava
engraçado e ria mais ainda.
Nossas casas, no centro histórico
de Sabará, eram separadas apenas pelos quintais. O dela, bem maior. Tinha
galinheiro, bananeiras, pés de café, jabuticaba, mamão, manga, abacate, goiaba,
uva, laranja da terra, figo, romã
e muitas hortaliças: couve, alface, almeirão, mostarda, salsinha,
cebolinha. Eu gostava mesmo era de taioba. Aliás, aprecio até hoje.
A horta contava, ainda, com tomate, chuchu, manjericão,
capim cidreira, boldo, funcho.
Para mim, era como se vivesse uma
versão sabarense do Sítio do Pica Pau Amarelo. Eu não perdia um episódio sequer
na TV.
Pelo menos uma vez por semana,
era intimado a almoçar com a vó Maria.
— Esse menino tá muito magro, Celeste, não deve tá
comendo direito — ela provocava minha mãe.
Eu não estava nem um pouco preocupado
com a estética, mas comida de vó
é mais do que especial. Jamais recusei.
Antes do relógio da igreja de São
Francisco soar as doze badaladas do meio-dia, eu já estava a postos porque
sabia que o horário da refeição era sagrado. Tinha que ser pontual. Lembro como
se fosse hoje das almôndegas, do frango caipira, do macarrão ao molho caseiro
de tomate, do feijão batido no liquidificador. De sobremesa, casca de laranja
da terra em calda, doce de figo e mamão com coco ralado. Tudo feito no fogão a
lenha.
Minha avó nunca gostou de chuva.
Raios e trovões então, nem se fala. Quando o tempo fechava, ela entrava para o
quarto e começava a rezar.
— Vai comprar querosene pra mim,
no Geraldo Arnoni.
O querosene era para abastecer o
lampião usado para iluminar caso faltasse energia elétrica. A vendinha do seu Geraldo
ficava a poucos metros da casa. Lá, a gente encontrava de quase tudo. Arroz,
feijão, açúcar, café, fubá eram vendidos a granel, pesados na hora.
Os clientes tinham cadernetas
onde as compras eram anotadas. O pagamento era mensal. Minha vó fazia o
contrário. Preferia o sistema pré-pago. Deixava uma determinada quantia todo
começo de mês e, à medida que fosse comprando, abatia do saldo.
Eu voltava com o querosene e
quase sempre com alguma guloseima. Pé de moleque ou bala de amendoim crocante, aquelas
bolinhas coloridas. Eram minhas preferidas. Mas sem exagero, para minha avó não
zangar comigo.
A cadeira de balanço é outra
lembrança deliciosa daquele tempo. Numa foto que guardo com muito carinho,
apareço em pé, ao lado da minha avó sentada na cadeira, tomando sol no quintal.
Tanto eu quanto ela estávamos muito sérios, cara fechada mesmo, sem nenhuma
canjica à mostra. Mas o registro desse momento é de uma graciosidade e beleza
indescritíveis.
A cadeira ainda existe. Quase
meio século depois, encontra-se em perfeito estado de conservação. Não faz
muito tempo descansei por alguns minutos nela, na casa de uma tia.
No casarão da rua São Pedro, em
Sabará, tinha também um relógio de parede, daqueles do tipo cuco, esculpido em
madeira. Originalíssimo. Ficar parado em frente a ele, esperando o passarinho marcar
cada quarto de hora, era um dos meus passatempos. Bom mesmo era quando dava
dez, onze, doze horas. Cuco! Cuco! Cuco! Eu ficava admirado.
Seis da tarde era o momento de
oração. Católica e muito devota de Nossa Senhora, minha avó rezava o terço
todos os dias. O relógio, uma relíquia
histórica, foi restaurado e há um bom tempo está na casa do meu pai.
Dona Maria faleceu há 24 anos, já
bem idosa. Mas essas lembranças permanecem vivas na minha memória afetiva e me
fazem lembrar o privilégio que foi ter, praticamente, morado com ela. Fui sim
um menino criado com vó mas, ao invés de ser mimado, fui presenteado com uma
infância inesquecível, repleta de momentos singulares e marcantes. Obrigado,
vó! Bons tempos, aqueles!
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Ah, querido Rodrigo, que narrativa deliciosa!!! Amei cada detalhe!
ResponderExcluirTambém eu fui colada numa vó Maria... Você me levou até meus 12 anos,numa casa simples,na Rua das Laranjeiras,201. Meu paraiso!!!
Parabéns,meu menino! Você brilhou!
Ps: Mônica Maria
ResponderExcluirObrigado, querida! Lembranças deliciosas!
ExcluirAh Rodrigo! Você me arrastou junto em suas memórias afetivas!... Que maravilha essas doces lembranças! Me levou também para a casa de minhas avós. Bons tempos de todos nós!
ResponderExcluirComo é bom relembrar esses tempos! Continue "mostrando as canjicas", meu querido, seu sorriso é encantador, como você.
ResponderExcluirSelma
Obrigado pelo carinho, querida!
ExcluirRodrigo, que delícia esse presente. Relembrei saudosamente das minhas avós. Na rua do Carmo com Zoroastro Passos eu cresci, brinquei e tive a melhor infância com muitos primos e amigos. Com o privilégio de ter as duas avós na mesma rua. Os Lopes e Oliveira. Ah e também tínhamos um relógio cuco, e é claro as badaladas do sino na igreja do Carmo (em algumas ocasiões). Muitíssimo obrigada por dividir conosco um texto riquíssimo de sentimento e lembranças. Parabéns.
ResponderExcluirQue bom que gostou e se identificou! Obrigado pela leitura!
ExcluirQue bacana! Tive o prazer de conhecê-la, rezar o terço, puxado por sua tia, morando ao lado por pouco tempo, logo ela faleceu. Também pude ir lá chorar minhas mágoas. Que benção ter umas vizinhas tão boas para mim e meus filhos. Valeu o tempo que convivemos com elas. Parabéns por sua narrativa tão gostosa de ler!
ResponderExcluirObrigado pela leitura e pelo carinho com todos nós! Fico feliz que tenha gostado.
ExcluirQue lindo texto meu querido!
ResponderExcluirConseguiu nos transportar nas melhores lembranças!!!
Parabéns!
-Rosilea Mota
Obrigado, querida! Que bom que gostou e se identificou!
ExcluirMuito bom relembrar esse tempo. Vc me fez lembrar das minhas idas em Ravena, onde eu brincava, chorava, sorria junto das minhas colegas. Minha vó Dagma, sempre alegre , sorridente e as vezes implicante comigo. Parabéns um texto muito bom de ler, de fácil entendimento. Cida
ResponderExcluirObrigado, Cida! As avós são sempre muito especiais.
ExcluirRealmente fantástica e boas recordações de momentos inesqueciveís. Na cas de minha vó materna tinha um verdadeiro pomar. Eram tantas árvores frutíferas. Havia dois cajueiros um do cajú amarelo e outro dovermelho. Texto excelente. Parabéns.
ResponderExcluirQue delícia! Que bom que gostou! Obrigado pela leitura!
ExcluirQue delicia de texto e lembranças!!! Me levou para a casa da minha avó. O relógio cuco, também foi reformado por mim, está hoje na casa do meu pai!! Obrigada por reavivar estas lembranças. Beijo. Cacau
ResponderExcluirObrigado, querida! Que bom que gostou! São lembranças sempre muito especiais.
ExcluirEncantador! Vivi também todo esse encanto. É o amor que se fez e se faz nessa obra numa multiplicidade de sonhos que explodem na alma da gente e que soam como música para aflorar memórias que não podem adormecer.Magia! Eustáquio
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