"Flores de maio", de Ana Paula Cruz

Membro-fundador da Academia de Ciências e Letras de Sabará
Cadeira 20. Patrono: Lúcia Machado de Almeida


FLORES DE MAIO

O mês é maio.

Pela estrada afora... Ela não vai sozinha.

É acompanhada por uma procissão de pessoas alegres, que falam alto e contam causos.

São homens, mulheres, crianças e jovens. Vestem suas melhores roupas, bem simples, e o que chama atenção são os pés encardidos das pessoas devido à longa estrada empoeirada que permeia todo o caminho.

A paisagem é seca, fosca, como em fotos antigas.

Ela é a noiva, veste um vestido que fora branco e pertenceu a sua mãe. Na cabeça uma simples coroa de folhas de laranjeira, o véu é pequeno e certamente não poderia arrastar-se pelo chão de terra batida pelo trotear dos gados e cavalos pertencentes aos pequenos sitiantes que habitam aquele pobre lugar.

Parece feliz, apesar do pouco contato que manteve com o noivo ao longo de dois anos de namoro e noivado.

É uma mulher vistosa, pode-se dizer bonita, possui um sorriso largo e amarelado com um batom rosa nos lábios, dos olhos cor de jabuticaba descem um lápis creon um pouco borrado.

Carrega em suas mãos um buquê de flores colhidas no jardim de sua casa. Ao seu lado estão os seus pais, ele com um terno bem maior que o seu tamanho e a mãe com um vestido florido.

Ambos não demonstram nenhum tipo de sentimento, apenas acompanham a filha, agora a noiva. Aproximam-se de uma pequena capela e começam a ouvir o repique do sino.

Avistam-se pessoas paradas do lado de fora e o grito de uma criança:

“Lá vem a noiva!”

Neste momento o coração da noiva dispara, não de emoção, mas pela incerteza de tudo que a aguarda a partir de agora. Aos poucos a comitiva começa a entrar na capela.

Do lado de fora ficam a noiva e o seu pai, não conseguem trocar um olhar de afeição, cumplicidade. O coral inicia a “Ave Maria” e mecanicamente ela dá o braço ao seu pai e entram pela igreja.

O noivo a espera e, quando chega a hora, toma-a dos braços de seu sogro e a conduz ao altar. Não existe carinho e afeto naquele ato, apenas cumprem um ritual.

O padre, já idoso, sem muitas delongas realiza o casamento. 

Ao selarem a união, o beijo dos noivos é frio e sem amor. 

Saem da igreja com muitas palmas e as pessoas jogam arroz.

Do lado de fora da capela será oferecida uma festa em celebração ao casamento. O pai do noivo abatera, dias antes, um boi para o churrasco e a família da noiva preparou grandes porções de arroz, maionese, farofa, ponche e vinho.

Uns músicos locais alegram a festa.

De longe a noiva observa o agora marido que em nenhum momento aproxima-se dela. Ele bebe sem parar e por muitas vezes ela percebe que ele corteja as convidadas da festa, que retribuem com sorrisos maliciosos.

A festa dura uma eternidade para ela, e, quando o noivo já está tão bêbado que mal consegue andar, é trazida uma carroça para que enfim “os pombinhos” partam para casa, para a noite de núpcias.

Praticamente o noivo é jogado dentro da carroça devido ao seu estado, e com a noiva sai em disparada pela estrada que dá acesso à nova moradia do casal.

Depois de algum tempo chegam em um pequeno casebre e dentro dele há um fogão a lenha, um guarda-comidas, uma pequena mesa e uma cama com colchão de capim. 

O banheiro fica fora de casa, tem uma fossa. O noivo entra cambaleando. Mal consegue tirar os sapatos, e olha aquela mulher —  agora muito assustada —, com ar de desprezo; deita na cama, dormindo instantaneamente.

Pela primeira vez ela olha pela janela, é noite de lua cheia. Pela primeira vez ela pensa em sua família e em tudo o que sua mãe viveu ao longo dos anos.

Toda privação, humilhação para criar seus onze filhos, as surras que tantas vezes tomava de seu marido embriagado, a falta de carinho, de afeto, a fome, a falta de amor. Não quer seguir o mesmo caminho da mãe. Olha para a cama e só consegue ouvir o ronco ensurdecedor que seu marido solta incansavelmente, e pensa no futuro que a reserva.

Tira o vestido branco, veste um outro que a própria mãe havia cosido para ela.

Olha mais uma vez para o marido desacordado na cama e depois pela janela, onde os pequenos raios de sol jazem anunciando o início da manhã, de um novo dia.

Certamente ele dormirá por muito tempo ainda. 

Ela abre a porta e, antes de sair, retorna até a mesa onde está seu buquê. Segura-o firmemente nas mãos e, sem olhar para trás, parte com passos firmes e rápidos, carregando consigo apenas aquele lindo buquê...  com as flores de maio.

Segue pela estrada afora, agora sozinha — mas em paz.


(Ao meu pai, Ilton Gomes, sempre me inspirando a contar novas histórias).


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Comentários

  1. Que lindo! Triste e libertador. Amargo e doce e real. Amei!
    Selma

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  2. Realismo puro de hem, minha " menina"!!! Com o título a romântica de plantão,aqui, esperava só sonhos e doçuras,mas... Acordei! Bjos ,com orgulho !!! 😘😘

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  3. Ps: sem o "de" Mônica Maria Granja Silva.

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  4. Bem romântico e nostalgico.
    Onde podemos vivenciar momentos vividos por nós em alguma época.
    Parabéns Ana.Abraço.Consuelo Neves.

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  5. Adorei, Ana! Feliz de saber que seu pai é seu incentivo.
    Continue nos contando o que lhe vai n'alma. Grande abraço.
    Isabel Cristina, a mais bela menina! ⚘

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  6. Luiz Alves
    Que belo texto.! Parabéns, Ana.

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  7. Que texto interessante! Faz refletir sobre o lugar da mulher no casamento, na vida a dois, na reprodução do papel da mulher. Parabéns!

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