"Um homem célebre", conto de Machado de Assis
Leitura complementar para o Grupo de Leitura Machado de Assis, da Academia de Ciências e Letras de Sabará.
Moderação: Bernardo Lopes
UM HOMEM CÉLEBRE (1883)
Machado de Assis
Vexado, aborrecido, Pestana respondeu que sim, que era
ele. Vinha do piano, enxugando
a testa com o lenço,
e ia a chegar à janela, quando a moça o fez parar. Não era baile; apenas um sarau íntimo, pouca gente, vinte pessoas ao todo que tinham ido jantar com
a viúva Camargo, rua do Areal, naquele dia dos anos dela, cinco de novembro
de 1875... Boa e patusca1 viúva! Amava o
riso e a folga2, apesar dos sessenta anos
em que entrava, e foi a última vez que folgou e riu, pois faleceu nos primeiros dias de
1876. Boa e patusca viúva! Com
que alma e diligência3 arranjou ali umas danças, logo depois do jantar, pedindo ao Pestana que tocasse uma
quadrilha! Nem foi preciso acabar o pedido;
Pestana curvou-se gentilmente, e correu ao piano. Finda a quadrilha, mal teriam descansado uns dez minutos, a
viúva recorreu novamente ao Pes- tana para um obséquio4 mui5 particular.
— Diga, minha senhora.
— É que nos toque agora aquela sua polca Não bula comigo,
nhonhô.
Pestana fez uma careta, mas dissimulou depressa, inclinou-se calado, sem gentileza, e foi para o piano, sem entusiasmo. Ouvidos os primeiros compassos, derramou-se pela sala uma alegria nova, os cavalheiros correram às damas, e os pares entraram a saracotear6 a polca da moda. Da moda; tinha sido publicada vinte dias antes, e já não havia recanto da cidade em que não fosse conhecida. Ia chegando à consagração do assobio e da cantarola noturna.
Sinhazinha Motta estava longe de supor que aquele Pestana
que ela vira à mesa de jantar e
depois ao piano, metido numa sobrecasaca cor de rapé7, cabelo negro, longo e
cacheado, olhos cuidosos8, queixo
rapado, era o mesmo Pestana
compositor; foi uma amiga que lho disse quando o viu vir do piano, acabada
a polca. Daí a pergunta admirativa. Vimos que ele respondeu aborre- cido e vexado. Nem assim as duas moças
lhe pouparam finezas, tais e tantas, que a mais modesta vaidade se contentaria de as
ouvir; ele recebeu-as cada vez mais
enfadado, até que, alegando dor de cabeça, pediu licença para sair. Nem elas, nem a dona da casa, ninguém logrou9 retê-lo.
Ofereceram-lhe remédios caseiros, algum repouso,
não aceitou nada, teimou em sair e saiu.
Rua afora, caminhou depressa, com medo de que ainda o
chamassem; só afrouxou depois que dobrou a esquina da rua Formosa.
Mas aí mesmo espera- va-o a sua grande
polca festiva. De uma casa modesta, à direita, a poucos me- tros
de distância, saíam as notas da composição do dia, sopradas em clarineta. Dançava-se. Pestana parou alguns
instantes, pensou em arrepiar caminho10, mas dispôs-se a andar, estugou11 o passo, atravessou a rua, e seguiu pelo lado oposto ao da casa do baile. As notas
foram-se perdendo, ao longe, e o nosso homem
entrou na rua do Aterrado, onde morava. Já perto de casa viu vir dois homens; um deles, passando rentezinho12 com o Pestana, começou a assobiar a mesma
polca, rijamente13, com brio, e o outro pegou a tempo na musica, e aí foram os dois abaixo, ruidosos
e alegres, enquanto
o autor da peça, desespera- do, corria a meter-se em casa.
Em casa, respirou.
Casa velha, escada velha, um preto velho14 que o servia, e que veio saber
se ele queria cear.
— Não quero nada, bradou o Pestana; faça-me café e vá dormir.
Despiu-se, enfiou uma camisola, e foi para a sala dos
fundos. Quando o preto acendeu o gás
da sala, Pestana sorriu e, dentro d’alma, cumprimentou uns dez retratos que
pendiam da parede. Um só era a óleo,
o de um padre, que o
educara, que lhe ensinara latim e música, e que, segundo os ociosos, era o próprio pai do Pestana. Certo é que lhe
deixou em herança aquela casa velha, e
os velhos trastes, ainda do tempo de Pedro I. Compusera alguns motetes15 o padre, era doido por música, sacra ou
profana, cujo gosto incutiu no moço, ou também lhe transmitiu no sangue, se é que tinham razão as bocas vadias, coisa
de que se não ocupa a minha história, como ides ver.
Os demais retratos eram de compositores clássicos,
Cimarosa, Mozart, Beethoven, Gluck,
Bach, Schumann, e ainda uns três, alguns gravados, outros
litografados, todos mal
encaixilhados16 e de
diferente tamanho, mas postos ali como santos de uma igreja. O piano era o altar; o
evangelho da noite lá estava aberto: era uma sonata de Beethoven.
Veio o café; Pestana engoliu a
primeira xícara, e sentou-se ao piano. Olhou
para o retrato de Beethoven,
e começou a executar a sonata, sem saber de si, desvairado ou absorto17, mas com
grande perfeição. Repetiu a peça; depois pa-
rou alguns instantes, levantou-se e foi a uma das janelas.
Tornou ao piano;
era a vez de Mozart, pegou de um trecho, e executou-o do
mesmo modo, com a alma alhures18. Haydn levou-o à meia-noite e à segunda
xícara de café.
Entre meia-noite e uma hora, Pestana pouco mais fez que estar à janela e olhar para as estrelas, entrar e olhar para os retratos. De quando em quando ia ao piano, e, de pé, dava uns golpes soltos no teclado, como se procurasse algum pensamento; mas o pensamento não aparecia e ele voltava a encostar-se à janela. As estrelas pareciam-lhe outras tantas notas musicais fixadas no céu à espera de alguém que as fosse descolar; tempo viria em que o céu tinha de ficar vazio, mas então a terra seria uma constelação de partituras. Nenhuma imagem, desvario ou reflexão trazia uma lembrança qualquer de Sinhazinha Motta, que entretanto, a essa mesma hora, adormecia pensando nele, famoso autor de tantas polcas amadas. Talvez a ideia conjugal tirou à moça alguns mo- mentos de sono. Que tinha? Ela ia em vinte anos, ele em trinta, boa conta. A moça dormia ao som da polca, ouvida de cor, enquanto o autor desta não cui- dava nem da polca nem da moça, mas das velhas obras clássicas, interrogando o céu e a noite, rogando aos anjos, em último caso ao diabo. Por que não faria ele uma só que fosse daquelas páginas imortais?
Às vezes, como que ia surgir das profundezas do inconsciente uma aurora de
ideia; ele corria ao piano, para aventá-la19 inteira, traduzi-la,
em sons, mas era em vão; a ideia esvaía-se. Outras vezes, sentado, ao piano, deixava os
dedos correrem, à ventura20, a ver se
as fantasias brotavam deles, como dos de Mozart; mas nada, nada, a
inspiração não vinha, a imaginação deixava-se estar dor- mindo. Se acaso uma ideia
aparecia, definida e bela, era eco apenas de alguma peça alheia, que a memória repetia,
e que ele supunha inventar. Então, irritado, erguia-se, jurava abandonar a arte, ir
plantar café ou puxar carroça; mas daí a dez minutos,
ei-lo outra vez, com os olhos em Mozart, a imitá-lo ao plano.
Duas, três, quatro horas. Depois das quatro foi dormir;
estava cansado, desanimado, morto; tinha que dar lições21 no dia seguinte. Pouco
dormiu; acor- dou às sete horas. Vestiu-se e almoçou22.
— Meu senhor quer a bengala ou o chapéu de sol? perguntou o preto, segundo
as ordens que tinha, porque as
distrações do senhor eram frequentes.
— A bengala.
— Mas parece
que hoje chove.
— Chove, repetiu
Pestana maquinalmente.
— Parece, que sim, senhor, o céu está meio escuro.
Pestana olhava para
o
preto, vago, preocupado. De
repente:
— Espera aí.
Correu à sala dos retratos, abriu o piano, sentou-se e espalmou as mãos no teclado. Começou a tocar alguma coisa própria, uma inspiração real e pronta, uma polca, uma polca, buliçosa23 como dizem os anúncios. Nenhuma repulsa da parte do compositor; os dedos iam arrancando as notas, ligando-as, meneando-as24; dir-se-ia que a musa compunha e bailava a um tempo. Pestana esquecera as discípulas, esquecera o preto, que o esperava com a bengala e o guarda-chu- va, esquecera até os retratos que pendiam gravemente da parede. Compunha só, teclando ou escrevendo, sem os vãos esforços da véspera, sem exasperação25, sem nada pedir ao céu, sem interrogar os olhos de Mozart. Nenhum tédio. Vida, graça, novidade, escorriam-lhe da alma, como de uma fonte perene.
Em pouco tempo estava a polca feita.
Corrigiu ainda alguns
pontos, quan- do voltou para jantar, mas já a
cantarolava, andando, na rua. Gostou dela; na
composição recente e inédita circulava o sangue da paternidade e da vocação.
Dois dias depois, foi levá-la ao editor das outras polcas suas, que
andariam já por umas trinta.
O editor achou-a
linda.
— Vai fazer grande efeito.
Veio a questão do título. Pestana, quando compôs a
primeira polca, em 1871, quis dar-lhe um título poético, escolheu este:
Pingos
de sol. O
editor aba- nou a cabeça, e disse-lhe que os títulos deviam ser, já
de si, destinados à po- pularidade,
ou por alusão a algum sucesso do dia, ou pela graça das palavras; indicou-lhe dois, A lei de 28 de Setembro ou Candongas26 não fazem festa.
— Mas que quer dizer Candongas não fazem festa? perguntou
o autor.
— Não quer
dizer nada, mas
populariza-se logo.
Pestana, ainda donzel27 inédito, recusou
qualquer das denominações e guardou a
polca; mas não tardou que compusesse outra, e a comichão da pu- blicidade
levou-o a imprimir as duas, com os títulos que ao editor parecessem mais
atraentes ou apropriados. Assim se regulou pelo tempo adiante.
Agora, quando Pestana entregou a nova polca,
e passaram ao título, o edi- tor acudiu que trazia um, desde muitos
dias, para a primeira obra que ele lhe apresentasse,
título de espavento28, longo e meneado. Era
este: Senhora dona, guarde
o seu balaio.
— E para a vez seguinte, acrescentou, já trago outro de cor.
Exposta à venda, esgotou-se logo a primeira edição. A fama do composi- tor bastava à procura; mas a obra em si mesma era adequada ao gênero, origi- nal, convidava a dançá-la e decorava-se depressa. Em oito dias, estava célebre. Pestana, durante os primeiros, andou deveras namorado da composição, gostava de a cantarolar baixinho, detinha-se na rua, para ouvi-la tocar em alguma casa, e zangava-se quando não a tocavam bem. Desde logo, as orquestras de teatro a executaram, e ele lá foi a um deles. Não desgostou também de a ouvir assobiada, uma noite, por um vulto que descia a rua do Aterrado.
Essa lua de mel durou apenas um quarto
de lua. Como das outras vezes, e mais
depressa ainda, os velhos mestres retratados o fizeram sangrar de remor- sos. Vexado e enfastiado29, Pestana
arremeteu contra aquela que o viera conso-
lar
tantas vezes, musa de olhos marotos e gestos arredondados, fácil, graciosa,
“saltadeira de riacho”, como diz a cantiga cearense. E aí voltaram as
náuseas de si mesmo, o ódio a quem
lhe pedia a nova polca da moda, e juntamente o
esforço de compor alguma coisa ao sabor clássico,
uma página que fosse, uma só, mas tal que pudesse ser encadernada entre Bach
e Schumann. Vão estudo, inútil esforço. Mergulhava naquele Jordão sem sair
batizado30. Noites e noites, gastou-as assim, confiado e teimoso, certo de que
a vontade era tudo, e que, uma vez que abrisse
mão da música fácil...
— As polcas que vão para o inferno fazer dançar
o diabo, disse ele um dia, de madrugada, ao
deitar-se.
Mas as polcas não quiseram ir tão fundo. Vinham à casa de
Pestana, à própria sala dos retratos,
irrompiam tão prontas, que ele não tinha mais que o tempo de as compor,
imprimi-las depois, gostá-las alguns dias, aborrecê-las, e tornar às velhas fontes, donde lhe
não manava31 nada. Nessa alternativa
viveu até casar, e depois de casar.
— Casar com quem? perguntou Sinhazinha Motta ao tio escrivão que lhe deu aquela
noticia.
— Vai casar com uma viúva.
— Velha?
— Vinte e sete anos.
— Bonita?
— Não, nem feia, assim, assim. Ouvi dizer que
ele se enamorou dela, por- que a
ouviu cantar na última festa de S. Francisco de Paula. Mas ouvi também que ela possui outra prenda, que não é rara, mas vale menos: está tísica32.
Os escrivães não deviam ter espírito33 — mau espírito, quero dizer. A sobrinha deste sentiu no fim um pingo de bálsamo34, que lhe curou a denta- dinha da inveja. Era tudo verdade. Pestana casou daí a dias com uma viúva de vinte e sete anos, boa cantora e tísica. Recebeu-a
como a esposa espiritual do seu gênio. O celibato era, sem dúvida,
a causa da esterilidade e do trans-
vio, dizia ele consigo; artisticamente considerava-se um armador
de horas mortas;
tinha as polcas
por aventuras de petimetres35. Agora, sim, é que ia engendrar36 uma família de obras sérias, profundas, inspiradas e trabalhadas.
Essa
esperança abotoou desde as primeiras horas do amor, e desabrochou à primeira aurora do
casamento. Maria, balbuciou a alma dele, dá-me o que não achei na solidão
das noites, nem no tumulto dos dias.
Desde logo, para comemorar o consórcio37, teve ideia de compor um noturno38. Chamar-lhe-ia Ave, Maria. A
felicidade como que lhe trouxe um princípio
de inspiração; não querendo dizer nada à mulher, antes de pronto, trabalhava
às escondidas; coisa difícil, porque Maria, que amava igualmente a arte,
vinha tocar com ele, ou ouvi-lo
somente, horas e horas, na sala dos retra- tos. Chegaram a fazer alguns concertos semanais, com três artistas, amigos
do Pestana. Um domingo, porém,
não se pôde ter39 o marido, e chamou a
mulher para tocar um trecho
do noturno; não lhe disse
o que era, nem de quem era. De repente, parando, interrogou-a
com os olhos.
— Acaba, disse Maria; não é Chopin?
Pestana empalideceu, fitou os olhos no ar, repetiu um ou
dois trechos, e ergueu-se. Maria
assentou-se ao piano, e, depois de algum esforço de memó- ria, executou a peça de Chopin. A ideia, o motivo eram os mesmos;
Pesta- na achara-os em algum
daqueles becos escuros da memória, velha cidade de traições. Triste, desesperado, saiu de casa, e dirigiu-se para o
lado da ponte, caminho de S. Cristovão.
— Para que lutar? dizia ele. Vou com as polcas...
Viva a polca!
Homens que passavam por ele, e ouviam
isto, ficavam olhando, como para um doido. E ele ia andando, alucinado, mortificado, eterna peteca entre a am- bição e a vocação... Passou o velho matadouro; ao chegar à porteira da estrada de ferro, teve ideia de ir pelo trilho acima e esperar o primeiro
trem que viesse e o esmagasse. O guarda fê-lo recuar. Voltou
a si e tornou a casa.
Poucos dias depois, — uma clara e
fresca manhã de maio de 1876, — eram seis horas, Pestana sentiu nos dedos um frêmito40 particular
e conhecido. Er- gueu-se devagarinho, para não acordar Maria, que tossira toda a
noite, e agora
dormia profundamente. Foi para a sala dos retratos, abriu o piano, e, o
mais surdamente que pôde, extraiu uma polca. Fê-la publicar com um pseudônimo; nos dois meses seguintes
compôs e publicou mais duas. Maria não soube nada; ia
tossindo e morrendo, até que expirou, uma noite, nos braços do marido, apavorado
e desesperado.
Era noite de Natal. A dor do Pestana teve um acréscimo,
porque na vi- zinhança havia um
baile, em que se tocaram várias de suas melhores polcas. Já o baile era duro de sofrer; as suas composições davam-lhe um
ar de ironia e perversidade. Ele
sentia a cadência dos passos, adivinhava os movimentos, porventura lúbricos41, a que obrigava
alguma daquelas composições; tudo isso ao
pé do cadáver pálido, um molho de ossos, estendido na cama... Todas as horas da
noite passaram assim, vagarosas ou rápidas, úmidas de lágrimas e de suor, de águas-de-colônia e de
Labarraque, saltando sem parar, como ao som
da polca de um
grande Pestana invisível.
Enterrada a mulher, o viúvo teve uma
única preocupação: deixar a música, depois de compor um réquiem, que faria executar
no primeiro aniversário da morte de Maria.
Escolheria outro
emprego, escrevente, carteiro, mascate, qual- quer
coisa que lhe fizesse esquecer
a arte assassina e surda.
Começou a obra; empregou tudo, arrojo, paciência, meditação, e até os caprichos do acaso, como fizera outrora, imitando Mozart. Releu e estudou o réquiem deste autor. Passaram-se semanas e meses. A obra, célere42 a princípio, afrouxou o andar. Pestana tinha altos e baixos. Ora achava-a incompleta, não lhe sentia a alma sacra, nem ideia, nem inspiração, nem método; ora elevava-se-lhe o coração e trabalhava com vigor. Oito meses, nove, dez, onze, e o réquiem não estava concluído. Redobrou de esforços; esqueceu lições e amizades. Ti- nha refeito multas vezes a obra; mas agora queria concluí-la, fosse como fosse. Quinze dias, oito, cinco... A aurora do aniversário veio achá-lo trabalhando.
Contentou-se da missa rezada e
simples, para ele só. Não se pôde dizer se todas as lágrimas que lhe
vieram sorrateiramente aos olhos,
foram do marido, ou se algumas
eram do compositor. Certo é que nunca mais tornou
ao réquiem.
—
Para
quê? dizia ele a si mesmo.
Correu ainda
um ano. No principio de 1878, apareceu-lhe o editor.
— Lá vão dois anos, disse este, que nos não dá
um ar da sua graça. Toda a gente pergunta se o senhor perdeu o talento.
Que tem feito?
—
Nada.
— Bem sei o golpe que o feriu; mas lá vão dois anos. Venho
propor-lhe um contrato;
vinte polcas durante
doze meses; o preço antigo,
e uma porcenta- gem maior na venda. Depois,
acabado o ano, podemos renovar.
Pestana assentiu com um gesto. Poucas lições tinha,
vendera a casa para saldar dívidas, e as necessidades iam comendo o
resto, que era assaz43 escasso. Aceitou
o contrato.
— Mas a primeira
polca há de ser já, explicou o editor. É urgente. Viu a carta do Imperador ao Caxias? Os liberais foram chamados ao poder; vão fazer a reforma eleitoral. A polca há de
chamar-se: Bravos à eleição
direta! Não é po- lítica; é um bom título de ocasião.
Pestana compôs a primeira obra do contrato. Apesar do
longo tempo de silêncio, não perdera
a originalidade nem a inspiração. Trazia a mesma nota genial. As outras polcas vieram vindo, regularmente. Conservara os retratos e os repertórios; mas fugia de gastar
todas as noites ao piano, para não cair em novas tentativas. Já agora pedia uma entrada
de graça, sempre que havia algu- ma boa ópera ou concerto de
artista; ia, metia-se a um canto, gozando aquela porção de coisas que nunca lhe
haviam de brotar do cérebro. Uma ou outra vez,
ao tornar para casa, cheio de música, despertava nele o maestro inédito;
então, sentava-se ao plano, e, sem
ideia, tirava algumas notas, até que ia dormir, vinte ou trinta minutos depois.
Assim foram passando os anos, até 1885. A fama do Pestana dera-lhe defi- nitivamente o primeiro lugar entre os compositores de polcas; mas o primeiro lugar da aldeia não contentava a este César, que continuava a preferir-lhe, não o segundo, mas o centésimo em Roma. Tinha ainda as alternativas44 de outro tempo, acerca de suas composições; a diferença é que eram menos violentas. Nem entusiasmo nas primeiras horas, nem horror depois da primeira semana; algum prazer e certo fastio.
Naquele ano, apanhou uma febre de
nada, que em poucos dias cresceu, até virar perniciosa45. Já estava em perigo, quando lhe apareceu o editor, que
não sabia da doença, e ia dar-lhe
notícia da subida dos conservadores, e pedir-lhe uma polca de ocasião. O enfermeiro, pobre clarineta46 de
teatro, referiu-lhe o estado do
Pestana, de modo que o editor entendeu calar-se. O doente é que instou47 para que lhe dissesse
o que era; o editor
obedeceu.
— Mas há
de ser quando estiver bom de todo, concluiu.
— Logo que
a febre
decline um pouco, disse
o Pestana.
Seguiu-se uma pausa de alguns segundos. O clarineta foi
pé ante pé pre- parar o remédio; o editor levantou-se e despediu-se.
—
Adeus.
— Olhe, disse o Pestana, como é provável que eu morra por estes
dias, faço-lhe logo duas polcas;
a outra servirá
para quando subirem
os liberais.
Foi a única pilhéria48 que disse em toda a
vida, e era tempo, porque ex- pirou
na madrugada seguinte, às quatro horas e cinco minutos, bem com os homens
e mal consigo mesmo.
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Audiolivro:
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1
Patusca: divertida, alegre.
2
Folga: brincadeira, divertimento.
3
Diligência: rapidez, prontidão.
4
Obséquio: favor, gentileza.
5
Forma contraída (apocopada) de “muito”. (n.e.)
6
Saracotear: dançar com empolgação, requebrar.
7
Rapé: pó de tabaco
de cor marrom-avermelhada.
8
Cuidoso: pensativo, preocupado.
9
Lograr: conseguir, ter êxito.
10
A expressão “arrepiar
caminho” significa mudar de rota. (n.e.)
11
Estugar: apressar, acelerar.
12
Rentezinho, no caso, quer dizer muito rente, muito perto.
(n.e.)
13
Rijamente: precisamente, rigorosamente.
14
O conto se passa antes da abolição da escravatura no Brasil, ocorrida
em 1888. (n.e.)
15
Motete: cantiga, canção.
16
Encaixilhado: emoldurado.
17
Absorto: imerso, compenetrado.
18
Alhures: num lugar
que não se sabe ao certo.
19
Aventar: conceber, criar.
20
À ventura: ao acaso, ao destino.
21
Lições, no caso, quer dizer aulas.
(n.e.)
22
Antigamente, algumas pessoas chamavam
de almoço a primeira refeição
do dia. (n.e.)
23
Buliçosa: agitada, empolgante.
24
Menear: balançar, cachoalhar.
25
Exasperação: irritação, impaciência.
26
Candonga: intriga, bajulação.
27
Donzel: puro, ingênuo.
28
De espavento: que causa espanto,
que chama atenção.
29
Enfastiado: aborrecido, farto.
30
A referência bíblica quer dizer que os
esforços de Pestana não tinham
resultado. (n.e.)
31
Manar: provir, brotar.
32
Tísica: pessoa que sofre de tuberculose pulmonar.
33
Nesse
caso, espírito significa senso de humor. (n.e.)
34
Bálsamo: remédio que traz alívio, algo que traz consolo.
35
Do
francês petit-maître, significa
pessoa fútil, infantil.
(n.e.)
36
Engendrar: compor, elaborar.
37
Consórcio: casamento, associação.
38
Composição musical que se inspira ou celebra a noite. (n.e.)
39
A expressão quer dizer que Pestana
não conseguiu se controlar. (n.e.)
40
Frêmito: tremor, agitação.
41
Lúbrico: sensual, erótico.
42
Célere: veloz, acelarada.
43
Assaz: muito, bastante.
44
No caso, as variações de opinião e emoções em relação às polcas. (n.e.)
45
Antigamente, alguém que passava muito tempo com febre, de modo que ela se tornasse constante e sua saúde viesse
a piorar, era diagnosticado com febre perniciosa. (n.e.)
46
Clarineta: quem toca clarinete.
47
Instar: insistir, pedir com obstinação.
48
Pilhéria: piada, gracinha.
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