A CIDADE E O TEMPO DE MACHADO DE ASSIS, de Alexei Bueno
A CIDADE E O TEMPO DE
MACHADO DE ASSIS
Alexei Bueno
Poeta, editor e crítico
Presente na edição
bilíngue de Casa
Velha (The Old House), da Cidade Viva Editora, coleção River of January. As
marcações sublinhadas aqui são do presidente da ACLS Bernardo E. Lopes para os
participantes do Grupo de Leitura Machado de Assis.
O ano de 1839, em que
veio ao mundo Joaquim Maria Machado de Assis, marcava o fim da década mais
conflagrada da história brasileira no século XIX, ao lado da futura primeira
década republicana, a de 1890. O período entre a abdicação de D. Pedro I em
1831, em favor de seu filho e a Maioridade do mesmo, aos quinze anos de idade
em 1840, ou seja, os nove anos da Regência, foi farto em revoluções,
separatistas ou não, em diversos quadrantes do país, como a Rusga em Mato
Grosso, a Cabanagem no Pará, a Balaiada no Maranhão, a Sabinada na Bahia, ou a
Farroupilha no Rio Grande do Sul. Toda essa instabilidade política só acabaria,
de fato, na metade da década seguinte com o território nacional íntegro e
pacificado pela espada de Caxias, a “vassoura do Império”.
Não saberemos nunca que
ecos dessa situação nacional chegaram ao menino nascido na Corte. Machado de
Assis, como é de conhecimento geral, foi homem de um sedentarismo notável, não
sabemos se por índole se pelos problemas com a epilepsia ou por ambas as coisas.
Em sua vida de 69 anos – idade provecta para os padrões do início do século XX
– seu mais longo afastamento do Rio de Janeiro foi uma viagem a Minas Gerais em
1890, já cinquentão, na qual chegaria até Barbacena, à qual se acrescentam umas
tantas estadas em Nova Friburgo e uma viagem a Barra do Piraí. Não é por acaso,
portanto, que, em seu romance publicado no ano seguinte, Quincas Borba,
o personagem Rubião aparece naquela cidade mineira. A verdade é que, com
algumas poucas exceções, o Simão Bacamarte de Itaguaí, em O alienista, o
Rubião de Barbacena em Quincas Borba, a sua obra imensa toma como
cenário o Rio de Janeiro onde viveu, microcosmo absoluto de sua comédia humana.
A importância ímpar e
fulcral de Machado de Assis na literatura brasileira, aliada à sua extrema
reserva, de toda vida, em fornecer quaisquer informações biográficas, deu
ensejo a uma série de lendas ou simplesmente inexatidões a respeito de suas
origens, que vale a pena comentar. Do pouco que sabemos, estes são os fatos
incontestáveis. Em 1805 casam-se no Rio de Janeiro Francisco José de Assis e
Inácia Maria Rosa, seus avós paternos. No ano seguinte nasce seu pai, Francisco
José de Assis, que vem a ser batizado na igreja de N. S. do Rosário e São
Benedito, então Sé da cidade, ainda existente, mas com todo o interior
destruído por um incêndio no ano de 1967. Três anos depois, em 1809 – e agora
precisamos atravessar boa parte do Atlântico para apanhar as pontas do tecido
do destino, ainda não urdido pelas Moiras – casam-se em Ponta Delgada nos
Açores, José e Ana Rosa, que daria à luz em 1812 Maria Machado da Câmara,
futura mãe do escritor. Três anos mais tarde o casal José e Ana Rosa embarca
para o Brasil com a filha e um seu irmão, seguindo uma onda de imigração
açoriana muito incentivada por D. João VI, o Príncipe Regente que em fins deste
mesmo ano de 1815 elevaria o Brasil a Reino Unido e seria coroado Rei no ano
seguinte.
Com um grande salto no
tempo chegamos a 1838, ano em que se casam, sempre no Rio de Janeiro, os pais
de Machado de Assis. Ele era pintor e dourador – essa última uma atividade
artesanal de certo grau de especialização –, ela uma agregada na chácara da
rica portuguesa D. Maria José de Mendonça Barroso, no Morro do Livramento, onde,
como toda a agregada, se dedicava a afazeres domésticos diversos. Tal chácara
do Barroso era uma vasta propriedade com uma casa grande e diversas outras
construções menores, que dominava o morro onde hoje se encontra uma imensa e
feia antena de telecomunicações. Francisco José de Assis e Maria Machado da
Câmara se casaram na capela da chácara, onde, numa das casas de empregados,
lhes nasceria o primeiro filho, o nosso Joaquim Maria Machado de Assis, no dia
21 de junho do ano seguinte. Na mesma capela seria ele batizado, tendo como
madrinha a sua rica proprietária lusitana. Sua mãe adotara, após o casamento, o
nome de Maria Leopoldina Machado de Assis – provavelmente em homenagem à mãe de
D. Pedro II, a Princesa Leopoldina.
A partir desse quadro,
que inclui quase tudo de documental que sabemos, é preciso destruir algumas
lendas cada vez mais disseminadas e exageradas a respeito do escritor: a
miséria extrema em que teria nascido; o baixíssimo nível cultural de seus pais;
e a sua dominante negritude, para usarmos a afortunada palavra criada por
Léopold Senghor. Para dar exemplo do nível de difusão dessas lendas,
registramos aqui que, em 2008, ano do centenário de morte de Machado de Assis,
pudemos ouvir afirmar-se publicamente que seria ele filho de uma lavadeira
negra analfabeta.
O biógrafo Gondin da
Fonseca, em que pese o seu caráter atrabiliário e o seu freudismo de pacotilha,
conseguiu, sujando as mãos no pó dos arquivos eclesiásticos, encontrar a
certidão de casamento dos pais de Machado, documento da maior importância na
qual constatamos, pela desenvolta assinatura de sua mãe, que se tratava de uma
jovem perfeitamente alfabetizada. Seu pai, que como pintor e dourador não era
um joão-ninguém sem qualificação, era pardo, filho de pardos, e a sua mãe uma
portuguesa açoriana branca. Tratava-se, portanto, de uma família comum do que
poderíamos chamar, talvez com certo anacronismo, de classe média baixa da
época. Sua composição étnica era, igualmente, o que de mais comum poderíamos
encontrar no período na cidade maciçamente portuguesa que era, e ainda
continuou a ser por muito tempo, o Rio de Janeiro, com uma população autóctone
livre altamente miscigenada, após quase três séculos de escravidão. Vale a pena
lembrar também que Francisco José era assinante do Almanaque Laemmert,
ou seja, um homem que lia, ou que no mínimo, gostava de estar informado.
Machado de Assis, pelas
fotografias da juventude – com destaque para a magnífica fotografia descoberta
em 2008 pelo grande bibliófilo carioca Manoel Portinari Leão, em que aparece
sentado de perfil, como se lesse um livro, aos 25 anos de idade, tirada por
Insley Pacheco e divulgada primeiramente na exposição comemorativa da Academia
Brasileira de Letras – era, fenotipicamente, um mulato claro com cabelos
castanhos lisos a partir da testa e que se encaracolavam à medida que dela se
afastavam. Tinha lábios grossos e um nariz de largura mediana. Tais dados, sem
qualquer importância, são aqui registrados apenas como contestação da tendência
espantosamente crescente da parte de movimentos racialistas brasileiros a
representar o autor de Dom Casmurro como um africano puro – como o foi,
por exemplo, o grande Cruz e Sousa – ou um negro retinto. Machado de Assis não
se distinguia como mestiço de inumeráveis membros da mais alta elite do
Império, como Francisco Acaiaba Jê de Montezuma, o Visconde de Jequitinhonha,
como Domingos Borges de Barros, o Barão de Pedra Branca – que José Bonifácio
chamava de Barão de Pedra Parda – como Saldanha Marinho, Presidente das
Províncias de São Paulo e Minas Gerais, ou como João Maurício Wanderley, o
Barão de Cotegipe, ideologicamente o maior escravocrata de seu tempo.
O que sempre nos parece
ter sido posto de lado na caracterização do homem foi a imensa importância de
Portugal e da colônia portuguesa do Rio para a sua formação. Há uma palavra –
da qual não gostamos aliás – muito em voga, “pertencimento”, que nos parece, no
entanto, servir ao caso. Vale a pena lembrar que o carioquíssimo Joaquim Maria
Machado de Assis era filho, marido, afilhado e cunhado de portugueses, para não
citar os seus inúmeros amigos lusitanos ou a sua precoce frequência do Real
Gabinete Português de Leitura. Em homenagem a Camões, nas apoteóticas festas
binacionais do seu tricentenário de morte em 1880, escreveu ele cinco sonetos
dos quais quatro, belíssimos, foram depois integrados a seu grande livro de
poemas Ocidentais, publicado nas Poesias completas em 1901, sem edição
independente. Em 1885 no livro O Marquês de Pombal, editado em Lisboa para
comemorar o centenário de morte do todo-poderoso ministro de D. José I –
ocorrido de fato três anos antes – publicaria Machado A derradeira injúria, quatorze
sonetos formalmente nunca repetidos, de uma qualidade excepcional. No já
lembrado Ocidentais encontramos igualmente poemas em homenagem a dois
escritores nascidos no Rio de Janeiro mas pertencentes às letras portuguesas,
Antônio José da Silva, o Judeu, e Gonçalves Crespo. Parece-nos, portanto, que
Machado, o escritor e o homem, sempre sentiu uma grande ligação com o lado
materno de sua ascendência. O Rio de Janeiro de sua época, e isso até a sua
velhice e ainda após a sua morte, era uma cidade de tal maneira portuguesa que
deu ensejo à conhecida piada de Luís Edmundo, o grande cronista carioca, quando
de sua primeira viagem à nossa antiga Metrópole. Interrogado sobre o que achara
de Lisboa, teria respondido: “Igualzinha ao Rio de Janeiro, com menos pretos e
menos portugueses.” Até a década de 1920, de fato, mais de 90% do comércio
carioca pertencia à colônia, o que deu ensejo às violentas diatribes do
jacobino e lusófobo Antônio Torres contra João do Rio – ambos mulatos como
Machado – sendo este último conhecido defensor da mesma através de seu jornal A
Pátria.
Da infância do autor de
Memórias póstumas de Brás Cubas não sabemos de quase nada, o que é notório. Em
1841 nasce-lhe uma irmã, Maria, que viria a morrer com quatro anos de idade em
1845, numa das muitas epidemias de varíola que avassalavam regularmente a
cidade. A mesma epidemia levou-lhe também a madrinha, a Viúva Barroso do Morro
do Livramento. As deploráveis condições sanitárias da cidade continuariam como
tais até a radical campanha de Osvaldo Cruz no governo Rodrigues Alves, já no
outro século. Em 1849, ano de seu décimo aniversário, o menino Joaquim Maria
perde a mãe, tuberculosa, com 37 anos. Sucumbia ela à grande doença de sua
época, para os que escapavam da febre amarela e da varíola. Cinco anos depois
seu pai se casaria novamente com Maria Inês da Silva, sua madrasta pelo resto
da adolescência, que parece ter-lhe tratado com muito carinho. Neste mesmo ano
de 1849 nasciam Rui Barbosa e Joaquim Nabuco. Dois anos antes nascera Castro
Alves. No ano seguinte, 1850, a Lei Eusébio de Queiroz extinguia oficialmente o
tráfico de escravos da África para o Brasil. Das relações afetivas de Machado
com essas personagens que povoaram seus primeiros anos, sua mãe, sua madrinha,
seu pai, sua madrasta, não nos ficou, em sua obra gigantesca, um único
depoimento. A afeição que sempre demonstrou por escrito pela esposa e por
diversos amigos não lhe rendeu uma só linha descritiva em relação aos que o
trouxeram ao mundo, embora tenha dedicado à memória da mãe as Crisálidas (seu
primeiro livro de poesia, escrito quando tinha 25 anos) e um poema. No
extremo oposto de um Gorki – apenas como exemplo –, que transformou a sua avó
materna numa das mais comovedoras figuras da literatura russa, Machado de
Assis, o anti-memorialista, nos surge quase com um ser criado ex nihil,
o que sempre muito acrescentou à aura misteriosa que cerca o início de sua
vida.
No ano de 1854 ao que
tudo indica, começa Machado a trabalhar na tipografia de Paula Brito no então
largo do Rocio, a atual Praça Tiradentes, ponto de encontro de muitos
escritores da época, à frente de todos o popularíssimo Laurindo Rabelo e entre
eles o seu amigo da mesma idade Casimiro de Abreu. É em 3 de outubro de 1854,
aos quinze anos portanto, que ele estreia na imprensa e nas letras, publicando
no Periódico dos Pobres ― ao menos do que chegou até nós ― o seu
primeiro poema, um bisonho soneto intitulado À Ilma. Sra. D.P.J.A. Tinha
início a Guerra da Criméia, o grande assunto da época, cujos ecos encontraremos
em Dom Casmurro.
De toda essa geração
literária de meados do nosso século XIX, assim como daquela que a seguiu, será
Machado de Assis, para só falar dos grandes nomes, um dos maiores sobreviventes
em matéria etária. Entre os poetas, Álvares de Azevedo morrerá aos 20 anos,
Casimiro de Abreu aos 21, Junqueira Freire aos 23, Castro Alves aos 24,
Fagundes Varela aos 32, Laurindo Rabelo aos 38, Gonçalves Dias com 41 anos. Dos
grandes prosadores, Manuel Antônio de Almeida, seu amigo e protetor, morre num
naufrágio aos 30 anos; seu muito amigo José de Alencar morrerá aos 48, apesar
de imensa obra literária que produziu concomitantemente com a vida política;
Aluísio de Azevedo aos 55, havendo abandonado as letras antes disso, quando
conseguiu um emprego público como cônsul; Raul Pompéia suicidou-se aos 32 anos;
e Euclides da Cunha, para fechar a lista, é assassinado aos 43. São dados
interessantes que demonstram como, junto ao gênio evidente, a longevidade –
para a época – atingida por Machado de Assis foi importante para a realização
de sua obra monumental, e quanto a literatura brasileira deve ter perdido por
mortes precoces, e não apenas no século XIX.
Em 1855 passa Machado a
colaborar regularmente na Marmota Fluminense, de Paula Brito. No ano
seguinte é admitido como aprendiz de tipógrafo na Tipografia Nacional,
exercendo o ofício até 1858, ano em que chega ao Rio de Janeiro o poeta
português Faustino Xavier de Novais, do qual se tornará amigo, fato que terá
primordial importância em seu destino. Sua carreira de homem de letras, vocação
irresistível, se consolida em variados órgãos de imprensa. Em 1861 inaugura a
sua bibliografia, publicando a comédia Desencantos e a tradução da
sátira Queda que as mulheres têm para os tolos. No ano seguinte, grande
amante do teatro que sempre foi, assume o cargo de censor teatral no
Conservatório Dramático Brasileiro. De 1864 data a sua verdadeira estreia, com
a publicação de Crisálidas. No mesmo ano morre seu pai e se inicia a
Guerra da Tríplice Aliança, o maior conflito bélico das Américas ao lado da
Guerra de Secessão americana, que dominará corações e mentes do país até o seu
término. Dois anos mais tarde, com a morte no Porto da mãe de Faustino Xavier
de Novais, sua irmã Carolina embarca para o Brasil. Em visita ao poeta, que
apresentava distúrbios mentais – lembremos que a loucura será sempre um dos
temas de eleição da obra de Machado –, conhece a irmã do amigo, que se tornará
a figura central de seu introspectivo mundo afetivo. Tratava-se de uma bonita
mulher – é preciso ver as suas fotos da juventude, não as da velhice, muito
mais divulgadas –, cinco anos mais velha do que ele. No ano seguinte, em
correspondência aberta com José de Alencar, apresenta ao público o jovem poeta
Antônio de Castro Alves, cuja genialidade escandalosa começava a extrapolar as
fronteiras da sua Bahia natal. Em 1869 morre Faustino Xavier de Novais, no dia
16 de agosto. A 12 de novembro, Joaquim Maria se casa com Carolina Augusta
Xavier de Novais, na capela particular da casa do Conde de São Mamede no Cosme
Velho. Será num dos cinco chalés para aluguel pertencentes à mesma família do
Conde de São Mamede, muito amiga do escritor, que anos depois o casal Machado e
Carolina encontrará seu pouso definitivo. Em 1870 acaba a Guerra do Paraguai. É
o ano em que Machado publica seu segundo livro de poemas, Falenas, e em que
Castro Alves, que morrerá no ano seguinte, publica Espumas flutuantes. Nesse
ano de 1871 a escravidão no Brasil parece se aproximar de seu fim, com a
aprovação da Lei do Ventre Livre em 28 de setembro, graças aos esforços
ingentes do Visconde do Rio Branco, mas ainda 17 anos se passarão até que ela
acabe. Na França, após a vergonhosa derrota para a Prússia, explode a Comuna de
Paris. Em 1872 Machado publica o seu primeiro romance, Ressurreição. No
ano seguinte é nomeado, a 31 de dezembro, 1º oficial da 2ª seção da Secretaria
de Agricultura, Comércio e Obras Públicas, início de uma carreira de perfeito
burocrata que o libertará da insegurança do mundo das letras e que exercerá
brilhantemente até as vésperas de sua morte.
Em 1874 publica o seu
segundo romance, A mão e a luva, e no ano seguinte o seu terceiro livro
de poemas, Americanas, onde dará a sua colaboração tardia ao indianismo.
É curioso notar que, enquanto a ficção machadiana é, como dissemos, quase
exclusivamente de ambiência carioca e quase inteiramente apolítica, em sua
poesia o autor viajará por muitas épocas e lugares que nunca conheceu, assim
como externará suas opiniões políticas e sociais de forma até arrebatada, em
poemas como “Epitáfio do México”, “Polônia”, “A cólera do Império” ou o furioso
“Hino patriótico”, composto durante a Questão Christie e reproduzido com
partitura, em bela página litográfica de Heinrich Fleuiss.
Em 1876 publica seu
terceiro romance, Helena, ao qual se seguirá, dois anos depois, Iaiá
Garcia. Nesse ano de 1878 tira uma licença na repartição e a 27 de dezembro
viaja, doente dos olhos e dos intestinos, para Nova Friburgo, onde fica até
março de 1879. É nessa viagem, ao que tudo indica, que concebe e começa a
escrever Memórias póstumas de Brás Cubas, momento de completa ruptura
estilística em sua obra, às vésperas dos quarenta anos e do nascimento do
Machado de Assis da plena maturidade estética. Em 1880 é representada, no
teatro de D. Pedro II, a sua comédia Tu só, tu, puro amor…, por ocasião
das festas organizadas pelo Real Gabinete Português de Leitura para comemorar o
tricentenário de Camões, às quais já nos referimos. Publica, na Revista
Brasileira, as Memórias póstumas de Brás Cubas, a sua grande obra-prima
enquanto romancista, na nossa opinião, entre os dias 15 de março e 15 de
dezembro, obra que sairá em livro no ano seguinte.
Em 1882 publica Papéis
avulsos, no qual começa a recolher em livro o inigualável conjunto de
narrativas curtas que fazem dele o maior contista brasileiro. A este se seguirá
dois anos depois Histórias sem data. Nesse ano de 1884 o casal Carolina e
Machado se muda – após haver morado nas ruas dos Andradas, Santa Luzia, da
Lapa, das Laranjeiras e na do Catete – para o já lembrado chalé da Rua Cosme
Velho 18, onde viverão até a morte de ambos.
1885
assiste à morte de Victor Hugo, o gigante máximo das letras ocidentais, para o
qual Machado então escreve o poema 1802-1885 que fará parte de Ocidentais.
Nesse mesmo ano publica em A Estação o folhetim Casa Velha, que
só sairá em livro em 1944 e que aqui reaparece em edição bilíngue. Alguns
críticos tentaram ver algo de autobiográfico nestas páginas, sem maiores
indícios comprobatórios.
Nos anos de 1888 e 1889
acontecem, consecutivamente, os dois fatos que alterarão de maneira
irreversível o país e sua capital, a Lei Áurea e a proclamação da República,
com o consequente exílio da família imperial. Machado, já numa posição única
nas letras pátrias, assiste como testemunha discreta aos dois eventos. Em 1890,
realiza, em companhia de Carolina e da família do Barão de Vasconcelos, a
convite dos diretores da Companhia Pastoril Mineira, a sua famosa viagem a
Minas Gerais, visitando as cidades de Juiz de Fora, Barbacena e Sítio, atual
Antônio Carlos, na qual oito anos depois morreria Cruz e Sousa, na mais
completa miséria, aos 36 anos de idade.
1891 vê sair à luz do dia
a segunda obra-prima romanesca de Machado, Quincas Borba. Sua velha madrasta,
Maria Inês, morre aos setenta nos de idade e o escritor comparece a seu enterro
acompanhado por Coelho Neto. Morre também o Imperador Pedro II no seu exílio em
Paris. Cinco anos depois, em 1896, publica mais uma recolha de contos, Várias
histórias, e é aclamado em 15 de dezembro para dirigir a primeira sessão
preparatória da fundação da Academia Brasileira de Letras. O ano seguinte, no
qual a instituição começa a funcionar de fato, é o ano da Guerra de Canudos, de
inimagináveis consequências para a mentalidade nacional.
Em 1899 Machado de Assis
publica a sua terceira e mais popular obra-prima no gênero do romance, Dom
Casmurro, e os contos de Páginas recolhidas. Em 1901 – ano em que
morre a Rainha Vitória, vetusta soberana da maior potência da época, após mais
de seis décadas de reinado –, lança as Poesias completas, onde aparece o
seu novo e maior livro de poemas, Ocidentais. 1902 vê o aparecimento de Os
sertões, no qual Euclides da Cunha apresenta às elites de nossa Belle
Époque positivista um outro Brasil insuspeitado, vivendo em pleno
feudalismo, com uma mentalidade medieval e esquecido de todos.
Três anos depois em 1904,
publica o romance Esaú e Jacó. A 20 de outubro morre Carolina, dias
antes de completarem 35 anos de casados. Sua dor com a perda da esposa é
intensa e duradoura. Ao publicar em 1906 os contos de Relíquias de casa
velha, abre o livro com o célebre soneto “A Carolina”, de um andamento
fortemente camoniano. Divide a sua velhice solitária entre a literatura, a
repartição, a Academia e a correspondência com os amigos. Em 1908 publica seu
último romance, o Memorial de Aires, onde o personagem título se
apresenta como observador risonhamente indiferente aos acontecimentos e à
passagem dos tempos.
Entra a 1º de junho em licença do serviço público para tratamento de saúde. Na
madrugada de 29 de setembro, às 3h20m, morre em sua casa do Cosme Velho e é
enterrado, segundo determinação sua e com grande acompanhamento, na sepultura
de Carolina, o jazigo perpétuo 1359 no cemitério de São João Batista, à beira
do qual Rui Barbosa, seu sucessor como presidente da Academia Brasileira de
Letras, faz o discurso de despedida.
Toda a obra de ficção de
Machado de Assis se passa, com raras exceções, como já dissemos, no Rio de
Janeiro que viu escoarem-se as suas sete décadas de vida. A cidade, que
conheceu como Corte, depois como Capital Federal, é o seu microcosmo, como a
Paris de Balzac, a São Petersburgo de Gógol, a Londres de Charles Dickens, para
citar uns poucos autores entre inúmeros. No Morro do Castelo – a acrópole
quinhentista da cidade, estupidamente demolida em 1922 –, só como exemplo,
passa-se um episódio de Esaú e Jacó, assim como o capítulo 75 de Memórias
póstumas de Brás Cubas, onde, recontando as origens de Dona Plácida,
aparece a Sé do Rio de Janeiro – cremos tratar-se da velha Sé, lá existente, e
assim ainda nomeada muito depois de perder tal dignidade – , talvez o trecho da
ficção machadiana que, na nossa opinião, melhor sintetize a sua visão
schopenhaeuriana da realidade, da vida intrinsecamente como dor:
“Assim, pois, o sacristão
da Sé, um dia, ajudando à missa, viu entrar a dama, que devia ser sua
colaboradora na vida de Dona Plácida. Viu-a outros dias, durante semanas
inteiras, gostou, disse-lhe alguma graça, pisou-lhe o pé, ao acender os
altares, nos dias de festa. Ela gostou dele, acercaram-se, amaram-se. Dessa
conjunção de luxúrias vadias brotou Dona Plácida. É de crer que Dona Plácida
não falasse ainda quando nasceu, mas se falasse podia dizer aos autores de seus
dias: – Aqui estou. Para que me chamastes? E o sacristão e a sacristã
naturalmente lhe responderiam: – Chamamos-te para queimar os dedos nos tachos,
os olhos na costura, comer mal, ou não comer, andar de um lado para outro, na
faina, adoecendo e sarando, com o fim de tornar a adoecer e sarar outra vez,
triste agora, logo desesperada, amanhã resignada, mas sempre com as mãos no
tacho e os olhos na costura, até acabar um dia na lama ou no hospital; foi para
isso que te chamamos, num momento de simpatia.”
No Caminho de Mata
Cavalos – Rua do Riachuelo desde a vitória naval do mesmo nome em 1865 –, “a
mais carioca das ruas” no dizer do autor, erguem-se as casas contíguas de
Bentinho e Capitu. É numa casinha da Gamboa que Brás Cubas, depois morador de
uma chácara no Catumbi, monta o seu ninho de amor com Virgínia. A protagonista
de “A desejada das gentes” (conto) habita a Glória, onde ficava aliás, o Clube
Beethoven, muito frequentado pelo melômano Machado de Assis. É na Igreja do
Carmo que Romão Pires, de “Cantiga de esponsais” (conto), exercia suas funções
como músico, a Igreja do Carmo na antiga Rua Direita – Primeiro de Março a
partir do fim da Guerra do Paraguai –, apesar de ele haver nascido no Valongo
onde existiu o velho mercado de escravos, e habitar a Rua da Mãe dos Homens, do
nome da igreja do mesmo nome, ainda existente, onde Tiradentes chegou a
hospedar-se, a atual Rua da Alfândega. Defronte à Capela Real, bem ao lado da
Igreja do Carmo na mesma Rua Direita, morreu a avó de Quincas Borba, atropelada
por uma carruagem. No aristocrático Botafogo da época viviam Cristiano Palha e
Sofia, que enfeitiçou o ingênuo Rubião de Quincas Borba. E assim por
diante, numa enumeração que tão cedo não terminaria…
O Rio de Janeiro é,
portanto, para Machado de Assis, o anfiteatro em que ele vê desfilar a dança
macabra do egoísmo e da baixeza dos homens, a arena na qual se movem os
espectros que horrorizaram o jovem príncipe Sidarta Gautama – antes de ele se
tornar o iluminado, o desperto, o Buda –, os espectros do sofrimento, da
velhice, da doença e da morte, todos inerentes ao destino dos homens, aos quais
poderíamos acrescentar um quinto, o mais dificilmente detectável, ainda que
ubíquo: o da loucura.
Após sua morte, quase
todos os traços físicos de Machado de Assis na sua cidade natal, na sua cidade
de eleição, foram desaparecendo pouco a pouco. Da casa em que nasceu, casa de
agregados da Quinta do Barroso, nada resta, como a própria chácara, e nem sabemos
o ponto exato em que se erguia. Os prédios que abrigaram as repartições em que
trabalhou foram todos demolidos. O chalé da Rua Cosme Velho, em que residiu por
um quarto de século com Carolina e no qual escreveu grande parte de sua obra,
foi posto abaixo no ano do seu centenário de nascimento, 1939, para dar lugar a
uma mansão, demolida por sua vez no final na década de 1980 para que se
levantasse um edifício de apartamentos com uma pizzaria no térreo, que lá está.
Um ano após a sua morte no dia 29 de setembro de 1909, um grupo de acadêmicos
inaugurou uma placa de mármore na fachada do chalé, capitaneados por Rui
Barbosa, tendo Olavo Bilac proferido um discurso na ocasião. O chalé foi
demolido mas a placa se conserva no Pátio dos Canhões, no Museu Histórico
Nacional, numa grande ironia machadiana ou num retrato de um país em que se
destroem as casas históricas e se conservam as suas respectivas placas comemorativas.
O Silogeu Brasileiro, onde ele presidiu a Academia e onde foi velado, também
foi posto abaixo. De todas as casas em que viveu, a da Rua da Lapa onde esteve
com Carolina por uns poucos meses logo após o casamento, parece que ainda
existe, salvo um erro na confrontação das numerações. Todas as outras
desapareceram. A capela em que se casou nos fundos da casa do Conde de São
Mamede no Cosme Velho, esta ainda existe, sem altar ou outro resquício de
função religiosa, assim como a própria casa, onde ele ia jogar gamão quase
todas as noites. Seu túmulo, finalmente, seu e de Carolina no Cemitério de São
João Batista, o “leito derradeiro” do soneto, foi desmantelado no final da
década de 1990. Suas cinzas – pouco mais do que isso resta de um corpo
enterrado por noventa anos no úmido e ácido solo carioca – foram, juntamente
com as de sua mulher, recolhidas ao Mausoléu dos Imortais no mesmo cemitério.
Seu
espectro, este persevera por todos os recantos do velho Rio de Janeiro, um
espectro a mais, a observar os outros cinco que enumeramos acima.
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