CONTRIBUIÇÕES IMORTAIS: "Golpe de Sorte", conto de Bernardo E. Lopes
GOLPE DE SORTE
BERNARDO E. LOPES
Membro-fundador da Academia de Ciências e Letras de Sabará
Cadeira 17. Patrono: Júlio Ribeiro
Conto também disponível para leitura/download em formato Kindle pela Amazon Brasil, no CQ code a seguir:
Ou no link:
“Você tem fósforo? Perdi os
meus.”
Ele
procurou uma caixinha de fósforos em sua carga. Tínhamos nos encontrado quando
eu me sentia um covarde, subindo uma colina de relva alta do outro lado da
mata. Era tarde demais para voltar – tinha me afastado de onde devia estar
posicionado, estava com medo. Meus palitos de fósforo tinham provavelmente
desaparecido num dos meus tropicões, quando encontrei um soldado morto no mato
e saí correndo.
Agarrei
a caixinha no ar. “Obrigado.”
“Tá indo
pra onde?” Seu rosto era fino, barba por fazer. Fugira muito antes de mim,
concluí. Portava olhos escuros de sobrancelhas muito arqueadas; perdera seu
capacete.
Dei uma
tragada, falei que procurava um lugar para descansar. Ele estava fazendo o
mesmo, contou; vinha do norte, sem pressa. Parecia menos cansado que eu.
“Tá
pensando em voltar?”, perguntei, não sem antes hesitar.
“Não.
Quero esperar um bocado.”
Justamente
os meus planos. Eu me permiti terminar meu cigarro, depois começamos a caminhar
sem destino. Ele me falou da família, perdera a mãe cinco anos antes, aos 16.
Era magro, provavelmente ágil entre as árvores e para se esconder; eu teria
matado centenas se estivesse na pele dele. O que eu tinha de forte eu tinha de travado:
pensava demais, as posições de guarda me incomodavam ou não pareciam seguras.
Eu tinha ouvido os primeiros tiros, atirado umas quatro vezes, talvez cinco, e
não tive nenhuma certeza de se tinha acertado alguém. Muita fumaça dançava no
ar, na hora.
Falei
pouco sobre mim, pensei que ele não estaria interessado. Comentei que não
acreditava que sentia falta da minha mãe e do meu pai por aquilo – eu queria
estar em casa. Ele concordou. Nossas ilusões sobre a guerra tinham se
desintegrado. Não queríamos dar meia volta.
Quase morremos
quando dois soldados largaram seus Lucky Strikes para mirar em nós. Meu colega
ergueu as mãos e gritou que éramos da mesma tropa que eles. Havia mais um
sentado na relva ao lado deles, que não se moveu. Um dos caras de pé baixou seu
fuzil M-16. O outro resistiu mais, uma semiautomática erguida na minha direção.
Depois a guardou. Era mais baixinho que eu, bochechas sombreadas por cicatrizes
de antigas espinhas. O rapaz sentado a seus pés estava ferido num braço. Quando
cheguei mais perto, inferi que esses dois últimos eram irmãos.
“Ele se
feriu, e a gente se perdeu na rota”, mentiu o cara do fuzil, apontando para os companheiros,
e então apertou a mão do meu colega. Era mais alto que todos nós, um soldado
forte, devia ter sido gordo um dia. Apertou minha mão.
“Vamos
procurar um lugar pra todo mundo descansar. Ele tá bem?”, meu colega indicou o
cara sentado, em frente ao qual eu agora estava de joelhos.
“Tá um
pouco inflamado”, o rapaz ferido falou, voz instável de um adolescente. Segurei
seu braço, dei uma olhada: pus e sangue, e carne arroxeado em volta do rasgo impreciso
e sujo da ferida.
“Mas a
bala já saiu”, explicou seu irmão, sério. Demorou um pouco até se sentir
confortável com a nossa presença. Devia ter minha idade, e seu irmão um pouco
mais novo.
Começamos
a caminhar, comendo dos nossos chocolates. Eu me sentia menos mal perto deles e
observava sua fala e seus movimentos, tentando entender sobre eles, sobre mim.
Carreguei a bolsa de remédios do cara ferido e o questionei um pouco sobre a
vida dele. Ele era calado e misterioso; o pouco retrato que consegui de sua
história veio através das declarações de seu irmão, que, tal como o cara mais
alto, explicava em frases muito simples detalhes fortes sobre de onde vinham e sobre
quem eram. Eu teria levado horas explicando aquelas mesmas coisas. Receei ter
de ficar calado, até pegar a dinâmica: comecei a ser breve e objetivo, e pouco
a pouco eles começaram a me ouvir com um interesse que me surpreendeu.
Achamos
um casebre no meio do nada, um lugar velho, de dois andares, as tábuas das
paredes degradadas pelo clima. Não havia luz lá dentro nem janelas quebradas;
não dava para ver o interior com a claridade ali de fora. Meu primeiro colega,
sempre mais enérgico, atirou para cima quando paramos à entrada. Nenhum som
saiu da casa. O soldado alto estava então ao meu lado, e a primeira impressão
austera que tinha me causado desaparecia numa bruma densa de simpatia que eu
começava a ter por ele. Indiquei a casa com um movimento do queixo. “Deve estar
cheia de fugitivos de guerra”, falei, mais para mim mesmo. Ele riu, e me peguei
rindo junto, impressionado com o acidente da diversão.
Entramos
um por um. Não encontramos ninguém; nem luz, nem móveis. No segundo andar o que
achamos foram umas pilhas de papéis e caixas. Estava tudo escrito em uma língua
que eu não conhecia, mas passei horas sentado, tentando decifrar os parágrafos
intermináveis. Em vão.
Anoitecia.
O mais novo me pediu para injetar o anestésico em seu braço. Fiquei sentado ao lado
dele, conversando — apesar de falar pouco, se dedicava a piadas fracas para
acompanhar as conversas bobas que eu e o cara mais alto não parávamos de render
para neutralizar nossos sentimentos. O meu primeiro companheiro, das
sobrancelhas muito arqueadas, ria muito do que a gente dizia, e criticava com
frequência incisiva quem havia nos mandado para ali. Tinha muito a dizer sem
conhecer profundamente as coisas que o incomodavam, mas, apesar disso, era um
bom sujeito.
Sempre
que eu ficava angustiado, fumávamos e conversávamos numa das janelas. Dormimos
sobre as caixas que desmontamos. A noite passou rápido e impressionantemente
sem sustos. Resolvemos buscar ajuda na manhã seguinte, por uma rota distante da
nossa posição antes designada. Inventamos um álibi de maneira colaborativa, e nós
o reavaliávamos ao longo do caminho, treinando cada palavra, até que, umas sete
horas depois, encontramos uma estradinha onde soldados feridos acompanhavam um
soldado são, que lhes gritava incentivos em voz alta e os motivava adiante.
Desfilavam todos com a cabeça pendendo para frente, seus ombros murchos, as
botas levantando poeira ao se arrastarem.
Enfiamos
nossos corpos no meio daquela procissão e mantivemos uma distância acessível um
dos outros, nos entreolhando de quando em quando. Ninguém notou que, fora o
mais novo, nenhum de nós estava ferido. Enfim chegamos ao acampamento, e nos
arrumaram macas. Eu estava tão exausto, e me passavam tantas coisas pela cabeça,
que, ali deitado, cheguei a pensar que fosse enlouquecer. Ficava me perguntando
se um dia alguém ia nos salvar de tudo. Se, mesmo em casa, eu ia saber o que fazer
com a minha vida, com toda ela. Não conseguia achar as respostas dentro de mim,
então não me restavam muitas coisas, e comecei a rezar. Mas, na verdade, eu
sabia que só estava tentando pegar no sono.
Querido leitor, assine seus comentários!
"tinhamos nos encontrado quando eu me sentia um covarde ". Estes são os nossos encontros mais significativos. Aqueles que se tornam referenciais eternos da nossa permanência e nos faz acreditar que a covardia, em algumas circunstâncias, é um sentimento que nos ensina a necessidade do outro, quase sempre para promover a evolução de ambos. Parabéns, meu caro Bernardo. Está mais que justiça da a admiração que tenho por você.
ResponderExcluirSilas Fonseca
Que viagem! Tão real sua escrita, tão cheia de cor e luz que basta falar "ação" e começa o filme. Sempre encantada com você!
ResponderExcluirSelma
Uau! Quanta lucidez até pra "pegar no sono"...
ResponderExcluirMe lembrei dos pastéis folheados no microondas metaforando reflexões no último conto...
...como sempre diziamos eu e Alzira:
você é brilhante!
Bjim.
"Falei pouco sobre mim"... Mas disse tanto... Sutilmente. Te amo, Bernardo. Edinha
ResponderExcluirParabéns! Muito bom ler seu texto! Riqueza de detalhes...
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirImpressionante como nos embala, nos arma e nos torna parte de um conflito interno e externo. O passar das horas, o correr dos fatos, o frenesi de projeções, das cenas sucessivas que se acumulam como as camadas de drama sôfrego e embriagante, fascinante!
ResponderExcluir