CONTRIBUIÇÕES IMORTAIS: "O 'Paula Rocha' em 48", de Mário de Guerra Lima
O "PAULA ROCHA" EM 48
MÁRIO DE LIMA GUERRA
Membro-fundador da Academia de Ciências e Letras de Sabará
Cadeira 23. Patrono: Osvaldo Alvarenga
O Grupo Escolar “Paula Rocha” em 1948 abriu seus portões para eu entrar, o que fiz com uma satisfação de um atleta subindo no pódio. Havia conquistado o direito de penetrar naquela magnífica edificação, que em tudo se assemelhava aos palácios das histórias que liam para mim.
O porte imponente do grande edifício de
dois andares espalhados na extensão de toda a praça, o burburinho de uma
multidão de outras crianças, o sem-número de professoras andando apressadas, a
sineta batendo blem, blem, blem! As grades de ferro das varandas
intermináveis, e eu entrando em uma fila para um destino desconhecido, mas para
o qual eu marchava com segurança e incontido entusiasmo.
A primeira sala. A professora que eu
nunca tinha visto. A esperadíssima hora do recreio, comer a cheirosa merenda,
trazida de casa na sacolinha branca, e ir brincar no pátio. Os primeiros
exercícios de matar o tempo, pois os dias iniciais eram apenas para os testes de
seleção das crianças e montagem das classes AN-1, AN-2 e AN-3. Essas classes
eram conhecidas popularmente como Sala A, Sala B e Sala C. Para a Sala A iriam
os que atingissem percentis 90 e 95, os demais iriam para as duas outras.
Lembro-me de um menino da Sala C, apelidado de Geraldo “Doido”. Bem mais velho
do que todos nós. Constantemente, era posto para fora da escola e ficava
gritando impropérios, perturbando as classes em frente à praça. Hoje,
possivelmente, seria encaminhado para um tratamento especializado.
Chegou minha vez de comparecer aos
testes. Aplicavam os testes de dois em dois alunos, cada um com uma professora.
Dona Didiu e Dona Luci Silva. Fui levado para Dona Luci.
Era no Salão Nobre. Eu nunca tinha
visto um piano de verdade. Só os de brinquedo das minhas primas Wanda e Inês ou
nos filmes do Cine “Borba Gato”. Dois espelhos magistrais, um de cada lado,
davam ao grande espaço a impressão de ser ele ainda maior. Jamais imaginaria
haver espelhos tão imensos. Na verdade, nunca vi depois outros daquele tamanho.
Em uma das paredes, três figuras sisudas me olharam. Dois homens e uma mulher
de óculos. Depois fiquei sabendo ser um deles o Governador Fernando Mello Viana,
que dera aquela escola para sua terra, Sabará. O outro era o patrono do grupo,
Prof. Sétimo de Paula Rocha, e a mulher era a primeira Diretora do Grupo, famosíssima
professora e muito querida da minha família, Mestra Ritinha.
Lembro-me apenas de um dos testes, eu deveria
fazer um desenho. A Dona Luci colocou na mesa uma caixa de fósforos “Pinheiro”
sem aquela gavetinha com os palitos. No lugar da gavetinha, ela introduziu um lápis
novinho em folha, nem estava apontado. Era para eu desenhar aquilo. Seria
“punga” (*) para mim, pois adorava desenhar. Já adulto, entendi que não estavam
em julgamento os “dotes artísticos” de nenhum novatinho, apenas a capacidade de
sua atenção em não desenhar o lápis fora da caixa. A caixa estava sobre uma das
suas laterais e com o rótulo da sua frente de costas para mim, de forma que eu
via era o seu fundo. Não precisaria desenhar o seu rótulo, achei mais fácil
ainda. Mas havia um pedacinho do selo aparecendo, tratei de desenhá-lo. Anos
depois, fiquei sabendo ter Dona Luci feito um comentário de que o selo tinha
uma ponta amassada e eu desenhei até aquele detalhe. Dias depois me mandaram
para a tal classe AN-1. Percebi ter causado alegria na minha família. E eu não
compreendi o motivo, porque, para mim, o mais prestigioso era já ter passado a
pertencer ao portentoso “Paula Rocha”.
Entrei na sala de aula definitiva e vi
os 43 coleguinhas com quem iria conviver até o ano de 1951.
O primeiro dia de aula foi uma
autêntica apoteose. Imediatamente fiz vários amigos: Luiz Sette, Giovane
Carvalho, Olavo Géo Verçosa e João Vieira Dias.
Mas o que mais me impressionou foram as
meninas. Não sabia que havia tantas nem tão lindas. Pareciam um filme colorido.
E sempre sorrindo e em alvoroço. Animadíssimas, amicíssimas, como se
conhecessem há anos. Lembravam-me um bando de passarinhos em festa. Era como se
estivessem sempre em suprema felicidade, ao contrário de nós meninos, que,
perto delas, parecíamos macambúzios e desajeitados. Elas ficavam separadas de
nós, em duas ou três filas, e nós meninos longe. Mas rapidamente aprendi o nome
delas. Lembro-me de algumas, cujos nomes vou mencionar em ordem alfabética para
evitar que, se alguma vier a ler esse artigo, não se melindre por não ser a
primeira:
- Ana Lúcia (sempre com enorme fita
branca nos cabelos), Francisca, Irene Braz, Irene Marilac (querida amiga até
hoje), Laura, Leyla, Maria Carmen e Maria Helena.
Nunca mais falei que quando crescesse
iria ser padre.
Siléa só chegaria no ano seguinte. No
2º Ano. Fiquei deslumbrado.
Com relação à desistência de ser padre,
o “Paula Rocha” criou para mim uma pequena enrascada, pois eu já havia declarado
para todas as amigas da minha mãe que eu iria “estudar para padre”. Não sei
como havia me surgido aquela ideia. Talvez por ser moda naquele distante início
da década de 1940, quando havia outros meninos falando o mesmo. Mas, sobretudo,
porque eu ficava envaidecido com a festejada boa impressão causada nas senhoras
com a minha resposta para a pergunta:
— Marinho,
o que você vai ser quando crescer?
Quando recebi essa pergunta pela
primeira vez, respondi foi outra coisa:
— Quero
ser um descascador de laranja na maquininha que vi em Belo Horizonte, na Estação
da Central.
Eu tinha ficado encantado quando vi o
jeito de descascar laranja com uma maquininha. Era um vendedor com um carrinho
cheio de laranjas e ganhando dinheiro só para descascar as frutas com o que
mais parecia um brinquedo. Não sei se ainda existe igual. Assemelhava-se a uma
máquina de moer carne. O laranjeiro prendia a laranja entre dois discos metálicos
e rodava uma manivela. Em poucos segundos, a casca saia todinha em formato de
um cordão comprido. E a laranja ainda ficava bonita demais, com aqueles sulcos
certinhos em torno dela. Faca ou canivete era só para cortar a “tampinha”.
Quem havia me feito a pergunta tinha
sido uma excelente empregada da minha mãe. A minha resposta provocou nela uma reação
tão negativa que resolvi, a contragosto, pensar em outra profissão. Essa empregada
morava em Roça Grande e, infelizmente, veio a falecer. Porém, eu juro que a vi
depois. Acordei certa vez durante a noite. Ela estava de frente aos pés da
minha cama. No escuro. Vestida de branco. Como consegui enxergar no escuro, não
me perguntem. Cobri a cabeça com o cobertor e fui dormir de novo.
As primeiras experiências com o “Livro
de Lili” não sei se marcaram todos os da minha geração como me marcaram, pois,
de repente, passava a entender melhor as histórias em quadrinhos e os filmes. Eu
havia aprendido a ler:
“Lili
Olhem para mim.
Eu me chamo Lili.
Eu comi muito doce.
Vocês gostam de doce?
Eu gosto tanto de doce!”
Para os exercícios de silabação, havia
um dever de casa que consistia em colar na cartolina uma página da lição com as
sílabas divididas em quadrinhos. Depois, os quadrinhos eram recortados,
misturados e levados para a escola. Na sala de aula, buscava-se compor palavras
com os quadrinhos das sílabas. Escrevi “LI-ÃO”. A professora pacientemente
aceitou, mas me alertou que o certo era “LE-ÃO”. Aprendi duas coisas, para mim
todo mundo podia continuar falando “lião” e não “lEão”, mas, na hora de se
escrever, tinha de ser com “e”.
Aprendemos a ler e a escrever.
Faleceu a mãe do Vigário. A professora
pediu a cada aluno para escrever uma mensagem para ele. Prometeu que a melhor
mensagem iria ser mandada para a Casa Paroquial. Após ler as 44 mensagens ela
não teve coragem de descartar nenhuma. Achou todas ótimas. Arranjou um envelope
grande e mandou entregar tudo para o padre. Depois leu para nós a resposta
dele. Agradecia muito, mas tinha ficado admiradíssimo com o fato de que todas
aquelas crianças já soubessem escrever em tão pouco tempo.
Em maio de 1948, uma grande festa foi
marcada para comemorar aquele acontecimento inédito no Grupo Escolar “Paula
Rocha”: uma classe inteira de alunos aprendera a ler e a escrever antes de
terminar o primeiro semestre letivo. Aliás, a Diretora Dona Mariinha, um tanto
incrédula, foi, pessoalmente, submeter os alfabetizados a uma sabatina. Levou
alguns livros de leitura e aleatoriamente escolheu alguns alunos. Abria uma
página qualquer de um livro. Entregava o livro ao menino ou à menina, escolhidos
por ela ao acaso, e ordenava:
— Leia!
De pé, o escolhido lia tudo na maior
tranquilidade.
Dona Mariinha tinha os olhos muito
grandes, mas quando saiu da sala eles pareciam mais arregalados.
Cinquenta anos após esse acontecimento,
em memorável festa comemorativa daquela histórica alfabetização, fiquei sabendo
de dados técnicos sobre a metodologia. Tratava-se da aplicação do Método Global
de Alfabetização, o mais moderno na época, e, por essa razão, havia sido
escolhida uma recém-formada em colégio conceituado, certamente atualizadíssima com
a inovação.
Houve uma dramatização das principais
lições do “Livro de Lili” e, para agilizar a mudança de trocas de roupas da
principal personagem, foram escolhidas três meninas para representar Lili:
Laura, Leyla e Francisca.
E eu, doido para ser o “Joãozinho”, fui
preterido por Jacyr.
Deram para mim outra incumbência: iria
escrever e fazer a LEITURA do discurso de despedida do “Livro de Lili” e dar as
boas-vindas ao novo livro, “O Bonequinho Doce”. A tônica deveria ser a LEITURA,
como comprovação para todo o “Paula Rocha” de que já sabíamos escrever e ler. Até
discurso.
Sucesso absoluto tudo!
Estou acabando e quase me esquecia de
contar uma particularidade: a minha primeira professora foi minha irmã, Lourdes
Guerra, recém-formada no Colégio “Sagrado Coração de Jesus” de Belo Horizonte.
Quando soube, recebi com decepção a notícia, pois me imaginava sendo aluno de
uma daquelas outras circunspectas professoras mais velhas. Não me dei por
vencido, só a chamava de “Dona Lourdes”, igual aos meus outros colegas. Depois
fiquei sabendo que ela prendia o riso quando me ouvia chamá-la de “Dona”.
Saímos de férias.
Quando voltamos, surpreendentemente, a
Diretora resolveu não contratar mais a jovem professora que tinha conquistado o
recorde histórico. Ela não era nomeada e sua permanência dependia da Diretora.
A Diretora ficara contrariada porque a professora havia conseguido uma vaga
para alfabetizar adultos no horário noturno e ela tinha prometido a mesma vaga
para uma amiga. O detalhe do motivo da não contratação só descobrimos na festa
do nosso cinquentenário de alfabetização.
Outra surpresa no segundo semestre foi a
revogação do anunciado livro “O Bonequinho Doce”. Em lugar dele foi implantada uma
cartilha do antiquado método do “beabá”. Líamos a tal cartilha quase de trás
para diante, pois a achávamos fácil demais.
Fomos de julho a dezembro sem qualquer
avanço significativo, devido a mudanças sucessivas de professoras. Em cinco meses
elas foram trocadas umas quatro vezes.
Porém, graças a Deus, em 1949 chegou
Dona Irene Pinto, que nos levou do 2º ano até o 4º ano.
Mas, 1949 é uma outra história.
***
Impressionantemente bem escrito. Mta emoção e saudade da minha época de Paula Rocha, tbm!
ResponderExcluirComo os assuntos se cruzam, sem se perder! Fantástico!
Eu ficaria aqui, lendo, por horas!
Brilhante!
Me fez lembrar de Fevereiro de 1.958.1° ano Sala 2 no Grupo Escolar Municipal "Carlos Goes" Professora Dna Lúcia.
ResponderExcluirDiretora Dna Orlandina de Castro Neves.
Sou Isabel Cristina.
ResponderExcluirAdorei ler Dr Mário Guerra...
Suas lembranças de infância na escola, nos trazem muitas recordações. Estamos vivendo tempos de muitas recordações...
Isso é muito bom!!
Adoreibo texto! Fiz um exercício para tentar resgatar na minha memória como me senti quando entrei pela primeira vez no Paula Rocha. Muito bom reviver isso. Obrigada pelo texto. Adorei!!! Queria saber se a Laura do texto é a minha mãe. Um forte abraço Dr Mário. Cacau
ResponderExcluirProfessor Mário, que texto saboroso! Sua narrativa flui,sua memória nos faz recordar nossa própria história! Que delícia de texto!!!! Não vejo a hora de ler a continuação! Amei!!!!
ResponderExcluirAprendi a ler com a Lili,nos idos anos 59, lá no Grupo Escolar "Christiano Guimarães"....mas...isso é outra história história.Parabéns!( Faça um livro : Memórias de um sabarense.Eis o título,o mete ou motes o Sr já os tem.
Respeitosos abraços!
Mônica Maria Granja Silva
mote*/retire uma repetição de história ( esse corretor abestado!!!!Rsrsrsrs!
ResponderExcluirExcelente texto, narrativa leve, parabéns! Também viajei no tempo, lembrando-me desse maravilhoso educandário!! Também (como Cacau minha sobrinha) gostaria de saber se a Laura citada, é a minha amada irmã.
ResponderExcluirGeraldo Sérgio Guimarães (Jurema)
Que "viagem"! Eu me vi naquele cenário em 1965. A grandeza da construcão, a excelência do piano, a delicada Lili! Obrigada por nos proporcionar essa gostosa saudade!
ResponderExcluirSelma
Revivi minha chegada ao Grupo Escolar Paula Rocha e refleti muito sobre a importância desse tempo na vida de cada pessoa!... Texto maravilhoso! Para ler e reler...
ResponderExcluirTive minha memória afetiva despertada lendo suas palavras,Sr Mário!
ResponderExcluirSomos feitos de histórias...Que orgulho também ser parte do "Paula Rocha"!
Forte abraço,Glaura
E eu que lá não estive… senti o gosto da lembrança como fora hoje! “A professora que eu nunca tinha visto.” E que ficou para sempre na memória!
ResponderExcluirBelíssimas recordações e narrativa perfeita, singela como as crianças. Voltei no tempo! Aguardando as próximas páginas. Parabéns!
ResponderExcluirEste comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirQue maravilha de relato! Tomei conhecimento do "Paula Rocha" agora, desta forma, apesar de ter estudado lá minha quarta série. Senti não ter minha mãe comigo, para ler para ela, pois era apaixonada por aquela escola. Parabéns a Dr. Mário, pela sensibilidade, carinho pela escola, seus professores e colegas! Agradeço, de coração, ter me dado está oportunidade de saborear esta leitura admirável.
ResponderExcluirEsta mensagem acima é minha, Eva da C. S. Alves.(Não soube com enviar)
ExcluirMário, querido amigo de turma de 1948 do “Paula Rocha”. Fiquei muito feliz de estar presente na sua memória , como uma das lindas meninas da sala. Parabéns por sua brilhante narrativa, o que me fez relembrar tantos momentos felizes vividos naquela instituição, e que marcam até hoje o meu coração . Sinto muitas saudades de tudo: nossos queridos colegas, nossa primeira Professora (Dona Lourdes), nossas apresentações, do recreio, e da Dona Irene sempre nos acarinhando. Enfim:
ResponderExcluir“Oh! que saudades que eu tenho
Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais!”
Casimiro de Abreu
São passagens inesquecíveis! Um forte abraço da Maria Helena