CONTRIBUIÇÕES IMORTAIS: "Jogo de Amor", conto de Selma Regina Cândido Rossi

 JOGO DE AMOR

SELMA REGINA CÂNDIDO ROSSI

Membro-fundador da Academia de Ciências e Letras de Sabará
Cadeira 19. Patrono: Lucas José de Alvarenga

 

A campainha mais longa significava o término do horário escolar.  A tarde passou sonolenta, a chuva fora rápida, mas forte. Chuva de verão.

A menina, no “alto” dos seus treze anos, descia a ladeira, já tão conhecida pelos seus passos, olhando a enxurrada que ainda fluía. Desejo de andar dentro dela, não na calçada. Fazia isso às vezes, mas tinha consequências em casa. A tentação crescia, era um dos direitos que achava ter — liberdade para esses pequenos prazeres. Porém, lembrando-se da mãe e do que viria se chegasse com os sapatos encharcados, desistiu. Seus direitos terminavam onde começavam os da mãe. Certo? Claro! Sem discussão, só obediência e ponto. Ah!  Doce e brava mãe!

O caminho era curto, podia ir devagar, apreciando a água que seguia ao encontro do rio. Amava observar a enxurrada correndo para o seu amor, seu lugar, levando suas experiências das ruas, barquinhos de papel e o que a imaginação desejasse, romantismo e realidade unidos tornando-os um.

Viu, repentinamente, um peão vermelho de Jogo de Ludo cair na enxurrada, ao mesmo tempo em que ouviu uma voz — pega pra mim? Pegou num impulso.

Aí sim, olhou ao redor — ninguém. Olhou para cima e deparou-se com um rosto sorridente, lindo, de olhar penetrante, enfeitando aquela janela. Seus olhares se cruzaram inocentemente, mas, eternizados ali, se deram conta de que o jogo começara. Foi um instante? Parecia mais, bem mais. Cena de novela, talvez conto de fadas, o fato é que aquele olhar era de outras eras, parecia conhecido, um reencontro de almas.

Foi até ela, pegou suas mãos com o peão, sem tampouco soltá-los.  Agradeceu. Estava jogando e a peça escapara, saindo pela janela. Simples explicação. Mas nenhum dos dois se moveu — olhos nos olhos a rua sumiu, a enxurrada perdeu a importância, o que estava em suas mãos foi esquecido. Apenas o que os olhos disseram ficou.

Saindo do torpor que aquele olhar causara, a menina continuou seu caminho para casa. Ao entrar, a mãe já foi logo chamando sua atenção pelos sapatos molhados. Como assim, molhados? Não se dera conta. Nem sentira o tal prazer.

Dias se seguiram assim, descia a ladeira com o olhar atento, ele estava na janela a esperar por ela. Num dia um bilhete jogado no ar em forma de aviãozinho, em outro saía para vê-la às escondidas.

O amor chegou cedo demais, arrebatador demais, forte demais, como são os amores assim.

Não sabia mais que idade tinha, o que sentia não condizia com a menina que ela incorporava. Era uma alma madura num corpo infantil. Um coração pulsante de mulher num peito ainda em formação.

Ela soube, tempos depois — por ele mesmo, os dois adultos então — que o peão fora arremessado de propósito. A janela era seu ponto de observação, a via descer a ladeira todos os dias e a paixão nasceu, fluiu como aquela enxurrada que ia ao encontro do rio, o seu amor, seu lugar.

O peão, nem lembravam mais a cor, foi uma jogada para outro jogo, um jogo de amor da vida inteira.



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Comentários

  1. Lindo! Com toda a candura de Selma... Bjs, Isabella

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  2. Lindo! Com toda a candura de Selma... Bjs, Isabella

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  3. Lindo! Com toda a candura de Selma... Bjs, Isabella

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  4. Oh! Meu Deus! Como essa escritora nós faz sentir protagonista do conto!!! Ainda mais que eu descia mesmo a ladeira da Intendência,mas o primeiro amor morava e mora lá,no alto.....Que delícia de leitura! Que beleza ! Que pureza! Que orgulho de ser amiga e colega dessa querida Selma Regina Cândido Rossi!!!!
    Assinado: Mônica Maria Granja Silva.

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    1. Meu primeiro conto, que bom que gostou. Orgulho é meu, querida!

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  5. Que história mais linda e sensivelmente contada, Selminha... Parabéns! Chuva e enxurrada de bênçãos pra vc! Glaura

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  6. Amém, amiga! Bom demais você ter gostado!🌹

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  7. Selma,sua linda, viajei em suas palavras e fui parar radiante diante de mim mesma. Parabéns e obrigada por tanta sensibilidade!
    Rosana Alves

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    1. História do primeiro (unico)amor de todos nós. Grata, minha linda!❤

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  8. É muito lindo! Achava que já tinha sido publicado! Adorei!

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  9. Grata, não me atrevi a fazer até agora. Um dia a gente toma coragem e vai.❤

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  10. Dedico à minha mana, Beth, volta minha amada, volta!🙌❤

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  11. Selma muito lindo, muito leve e solto seu poema, me impressiona a sua facilidade de brincar com as palavras que transforma seu poema num verdadeiro necta dos Deuses.
    Me agrada muito seu estilo de brincar e sua simplicidade de fazer das palavras um verdadeiro jogo de amor.
    Adorei amiga!!!
    Vitor Hugo Evangelista

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    1. Zu, gratidão amigo, muito me honram suas palavras, sempre!❤

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  12. Oi, Selma! Que conto bonito e bem feito! A sintonia entre o tempo e espaço criados favorecem as ações dos personagens, que são delineados com a leveza que o tema pede. Abraços!

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  13. Gratidão, Alzira! Lisonjeada e emocionada com suas palavras.❤

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  14. Que lindo isso!!! Delicioso de ler e sentir!!! Viva o amor puro, inocente e único. Um beijo querida. Parabéns!! Cacau

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  15. Que lindo isso!!! Delicioso de ler e sentir!!! Viva o amor puro, inocente e único. Um beijo querida. Parabéns!! Cacau

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  16. Selminha fiquei encantada e me lembrei da minha infância, da pureza que exista dentro de nós!!

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  17. Lendo, compus a cena de você escrevendo e solfejando uma melodia, na força da sua interpretação.".....ninguém consegue afastar da memória a primeira história..........."
    Pyramo

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  18. Grata, Pyramo!Honrada com suas palavras. Abraço.

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  19. O desejo e o real sempre estiveram próximos. Gostei muito.

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