CONTRIBUIÇÕES IMORTAIS: "Marcas da Vida", conto de Ana Paula Cruz
MARCAS DA VIDA
ANA PAULA CRUZ
Membro-fundador da Academia
de Ciências e Letras de Sabará
Cadeira 20. Patrono: Lúcia
Machado de Almeida A
“Dizem que a saudade
não vai embora. É porque
o amor resolveu ficar”.
O
pai, Zé da Barraca, perdera uma das mãos durante a infância, dilacerada em um moedor de cana.
Desde então, só andava com o cotoco
no bolso da calça.
Mais
tarde, um dos filhos, o mais velho, adquiriu tal hábito, mesmo tendo as duas mãos.
Zé
era um homem íntegro, trabalhador, honesto, de pouca conversa, nunca levantou a voz para seus filhos, mas impunha total
respeito e admiração sobre eles. Era repleto de bons exemplos e valores.
Teve
uma pequena “bitaca”, daí o apelido Zé da Barraca, mas foi dirigindo um caminhão Alfa Romeu (Fenemê), sem nenhuma
adaptação, que trouxe o sustento e as historias de sua
família.
Como Zé dirigia bem pelas estradas
da vida!
Naquela época,
recebeu uma autorização especial para conduzir
o seu caminhão.
Zé amava Zozoca, sua mulher, mãe de seus filhos. Ela tinha um temperamento bastante diferente de seu homem, tinha
“pulso forte”, corrigia os filhos com rigidez e sabedoria, com sábias palavras orientava a todos que faziam
parte do seu convívio. Amava cozinhar
e sua grande alegria era ver a casa simples cheia de amigos. Não saía da cozinha e a fartura
era abundante.
A
casa tinha um astral diferente, ecoavam vozes, risos, músicas. O grito do
truco, causos e muitas conversas
“olho no olho”. O amor e os ensinamentos não faltavam. Os pratos especiais preparados por Zozoca aguçavam o
paladar, o olfato, a visão e o tato, pois era
impossível passar pela cozinha e não “roubar” uma lasquinha das
deliciosas iguarias que estavam sendo preparadas.
A
avó materna, Margarida, tão sábia quanto a única filha, era extremamente organizada, caprichosa. Morava sozinha,
sua casa humilde, com paninhos alvejados, roupas
impecavelmente limpas. Exalavam o cheiro de uma fragrância do perfume que ela usava diariamente. O chão coberto de
vermelhão espelhava o brilho das pessoas que entravam
naquela casa. Pisava-se com cuidado para não ofuscar
o brilho do piso.
Ah! Casa de Vó...
No fundo um quintal
com árvores e plantas, onde às vezes os netos aproveitavam
para namorar.
Margarida era esperta
e, quando notava o silêncio no quintal, aproximava-se “tossindo” para que os “pombinhos”
não fossem pegos de surpresa.
Era
impossível sair da casa de avó sem comer um enorme pedaço de queijo e tomar um
copo transbordando de café. Ninguém ousava recusar o “lanchinho” servido em uma
mesa coberta por uma toalha limpíssima, seria uma grande desfeita, e certamente
ela não ficaria satisfeita.
Os
cinco filhos do Zé, da Zozoca e netos da Vó Margarida foram criados em meio a
toda esta simplicidade, nada faltou àquela família, principalmente virtudes e valores,
até hoje seguidos por eles. Não foram uma família perfeita, eram diferentes em seus
modos e atitudes, mas os preceitos, as lições ensinadas ao longo dos anos não sucumbiram
ao tempo e em meio às tempestades da vida.
Durante
a infância, deliciaram-se com os momentos mais felizes que uma criança pode viver.
Brincavam na rua, pique-pega, bate estaca, finco, pipa, e só paravam com o chamado
da mãe, e “ai” de quem não voltasse para casa imediatamente.
Nos
fins de semana, o pai colocava na boleia do caminhão toda a família. A mãe preparava
um delicioso piquenique. A família se dirigia para o Clube Caça e Pesca e lá passava
o dia. Muitos vizinhos e moradores da redondeza, certos do passeio da família, ficavam
em pontos estratégicos para pegarem uma carona na boleia do Alfa Romeo.
Em
meio aos nascimentos, comemorações de aniversários, formaturas, casamentos, a
chegada dos netos, a família foi crescendo, mudando seus rumos, mas sempre unida.
Em
uma manhã, ao sair para ir ao supermercado para comprar ingredientes para seu delicioso
almoço, Zozoca partiu... um mal súbito. Quanta dor e desespero! A família perdeu
o seu porto seguro... seu chão.
A
alegria durante muito tempo desapareceu daquela casa, da família. Muitos amigos
não ousaram a retornar àquele espaço sagrado da Zozoca.
Vó
Margarida ficou triste, depressiva, pois perdera a sua única filha e, dois anos
após a partida de sua “menina”, foi encontrá-la junto a Deus.
Seu
Zé agora estava fechado em seu mundo. Com o passar do tempo, o Alzheimer o consumiu.
A sua amada “Zozoca” foi sendo apagada de sua memória, mas continuou cada vez mais
presente na vida e na memória de seus filhos, netos, amigos.
Seu Zé também cumpriu a sua
missão e partiu ao encontro de sua amada.
A família... sobreviveu!
Seu Zé, Dona Zozoca, Dona
Margarida continuam a fazer parte da memória afetiva de cada membro daquela família.
Aos
poucos, as festas, os almoços, as alegrias, as tristezas, as doenças, sucessos,
adversidades, as enchentes constantes, continuaram acontecendo... Vida que segue...
Em
todos os momentos vividos pela família eles são citados: um conselho deixado pela
Vó Margarida, um segredo da Zozoca para preparar uma comida, a perseverança do seu
Zé e as peripécias com o seu caminhão... sempre são lembrados!
Eles são a essência!
Hoje,
a casa construída pelo Zé da Barraca para abrigar sua família encontra-se em
ruínas, parte dela foi levada pela última enchente ocorrida há pouco tempo na cidade,
porém é impossível entrar neste templo sagrado sem sentir todas as vibrações que
foram deixadas. Na varanda, na sala de visitas, na cozinha, mais uma vez, todos
os sentidos são aguçados, o cheiro do café fresquinho, as risadas altas, a casa
cheia e os sentimentos transbordam, em forma de lágrimas, de alegria, de amor! Saudades!!!
E
a herança deixada? O caráter, a educação, o respeito ao próximo, o amor o
carinho e a esperança. Não foi necessário fazer inventário para a partilha destes
bens, que continuam se multiplicando a cada dia.
E
eu, que não vivi esta história, após ouvi-la por diversas vezes, ouso contá-la.
Sinto que já faço parte dela!!
Com
a benção de Zé, Zozoca e Margarida!
Dedico à família Motta, em especial
a Nei/Rei.
Fim
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Que belo conto, bem ao estilo mineiro. Repleto de Simplicidade e amor. PARABÉNS pelo trabalho!
ResponderExcluirNossa, que gostinho de infância! Que história gostosa de ler. Amei! Sandra
ResponderExcluirNossa! Trazendo velhas lembranças de volta! Parabéns!
ResponderExcluirLinda! Emocionante, como bem descrito, lendo, além de nos identificarmos, nos inserimos dentro do contexto e eu em particular, me senti acalentada às lembranças da casa de vovó e papai. Obrigada!
ResponderExcluirAh! Que saudades da casa de vó Maria!!! Parabéns! O túnel do tempo se ilumina e voltamos à infância,,com mil lembranças! Bjos! Mônica Maria
ResponderExcluirQue bacana documentar uma história tão linda. Realmente Zé da Barraca, Dona Zozoca e Vó Margarida merecem essa bela homenagem. Obrigada por compartilhar em palavras tão bem usadas para uma família que se mantém no amor. Abraço.
ResponderExcluirHistórias vakorosas de família que nos embalam pra sempre. Parabéns pela bela homenagem.
ResponderExcluirSelma
Nossa,Que lindo!!! Me faz lembrar a infância que tive no interior de Minas, a carona no caminhao do fazendeiro vizinho que a gente pegava pra ir a cidade. Meu pai partiu ha pouco tempo, mas minha mãe segue firme na mesma sintonia, mas seus ensinamentos continuam mais vivos do que nunca. Parece que vc contou minha infancia, as brincadeiras, Ufaaaaa. Abraços,Leda.
ResponderExcluirMuito linda a história, me emocionei. Parabéns Ana Paula.
ResponderExcluirAna...você é uma grande escritora, que talento incrível! Seu conto tem cheiro, sabor, cor, sentimentos, enfim, vida. Receba minhas palmas e mais admiração ainda. Abraço, Dani Fiúza.
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