CONTRIBUIÇÕES IMORTAIS: "O 'Clube dos Amigos do Saber' e o susto da tia", texto de Mário de Lima Guerra

O "CLUBE DOS AMIGOS DO SABER" E O SUSTO DA TIA

MÁRIO DE LIMA GUERRA
Membro-fundador da Academia de Ciências e Letras de Sabará
Cadeira 23. Patrono: Osvaldo Alvarenga


Em meados da década de 1950, a minha tia, Profa. Aurora Machado de Lima Fantini, a Tia Loló, comprou um antiquíssimo casarão na Rua do Carmo. Frente alta e majestosa, amplas janelas e artística escadaria de pedra. De um estilo colonial perfeito, sua parte de trás era assobradada, em forma de “L”. Lembrava a casa em que morou o Marquês de Sapucahy, no início da rua que leva seu nome e que foi até mencionada por Dom Pedro II em seu Diário. Ambos os casarões já foram demolidos.
Na casa, havia funcionado a Escola “Santa Rita”, antes de se mudar para o sobrado da Praça Mello Vianna.
Como a reforma do casarão ainda iria demorar, minha tia o emprestou para minha irmã, Profa. Lourdes Guerra Machado, ministrar as aulas da sua Escola “Regina Coeli”. Assim, para seu espaçoso salão da frente, foram transferidos os armários, as carteiras e o quadro negro, que antes ficavam em uma sala da casa em que morávamos, na mesma rua.
Um quarto dos fundos e a cozinha do velho edifício, minha tia cedeu para moradia provisória do João Gaspar das Neves, um idoso muito pobre, que vivia da ajuda de pessoas caridosas e fazia pequenos serviços de jardinagem e corte de lenha para os fogões daquele tempo. Como ele era de Santa Bárbara, afirmava ser descendente do Barão de Cocais e, em decorrência do seu sobrenome, dizia ser parente do ex-presidente Dutra. Era uma figura popular e simpática, adorava se apresentar em programas de calouros das emissoras de rádio daquele tempo. Começava a cantar com voz horrível, melodia desentoada e letras desengonçadas. Se fosse nos dias de hoje, poderia até fazer sucesso, mas, há setenta anos, era imediatamente reprovado, deixando-o  muito bravo. Certa vez, na rádio Inconfidência de Belo Horizonte, o animador do programa o apelidou de “João Febrônio”, sendo que Febrônio era um criminoso de péssima fama. O auditório deu gargalhadas. Como João Gaspar era surdo, não entendeu a maldade da brincadeira. Em Sabará, esclareceram-lhe o que realmente tinha ocorrido. Ficou furioso. Então o apelido pegou. Mas João o detestava.
Na mesma ocasião, meu grupo de sete inseparáveis amigos resolveu fundar um clube para conferências e debates dos “grandes problemas mundiais” daquela época, ou que, pelo menos ao nosso juízo, considerávamos ser de extrema importância. Entre outros assuntos de que me lembro, foram planejadas “conferências” sobre “temas livres”, tais como o lançamento do Sputnik, as implicações políticas dos concursos de Miss Universo, os “Cinquenta Anos em Cinco” de JK, a chegada do Rock’n Roll, os maiores da Literatura Brasileira e os livros de Eric Fromm, Myra y Lopez e Pierre Weill (Filosofia e Psicologia), bem como notícias de Pesquisas Históricas. Esse era o sonho. Como outros adolescentes de todos os tempos, acreditávamos saber tudo e ser capazes de resolver os graves (e inacabáveis) problemas da Humanidade.
As reuniões eram feitas à noite, na sala de aula, onde funcionava a Escola da minha irmã. Sempre à luz de velas, porque minha tia ainda não havia pedido a religação da energia elétrica. Desta, aliás, minha irmã não tinha necessidade, pois suas aulas eram diurnas, as janelas eram muito amplas, a sala muito clara e as obras de reforma estavam longe de poder começar.
Convidávamos também outros jovens que julgávamos possuir interesses similares aos nossos. Mas eles quase sempre bocejavam durante os acalorados debates e dificilmente retornavam. Outras vezes, após ter sido escolhido para ser o “próximo conferencista” (a escolha era feita por sorteio), o novo “sócio” nunca mais aparecia. A maioria esmagadora dos moços daquela época estava muito mais interessada no futebol amador da cidade e suas preferências musicais eram por Nelson Gonçalves, Nora Ney e Trio Irakitan. Em Sabará, na década de 1950, a música norte-americana ainda não fazia sucesso e, mesmo nas emissoras de rádio de Belo Horizonte, o Samba-Canção e o Bolero eram os ritmos da moda. Dessa forma, nossos comentários sobre Filosofia, Política , Ciência e músicas de Elvis Presley, Connie Francis ou Bill Haley não atraiam outros jovens.
Conforme se lê na Ata da Sessão de 30 de setembro de 1958, a Diretoria do Clube estava assim constituída: Luiz Gonzaga Sette, Jayme de Assis Camponez, Mário de Lima Guerra e Éder Martins Sobrinho, este último como Tesoureiro, cargo que não sei por que inventamos, pois nenhum de nós tinha dinheiro. Alguns “sócios” do Clube até já ganhavam algum dinheirinho, trabalhando informalmente. Eu ajudando minha irmã em sua escola, nas aulas do Curso de Admissão ao Ginásio; Luiz, trabalhando como Caixa do Bar “Primavera”, pertencente ao seu pai, Sr. Joaquim Sette; Jayme ajudando seu pai, Sr. Celso Camponez, na Alfaiataria; Alfredo Sheid Ferreira também ajudando seu pai, Sr. João Xisto Ferreira, na Relojoaria. Sobre o Sr. João Xisto, relojoeiro e instrumentista da Estrada de Ferro Central do Brasil, vale registrar ter sido ele um mestre na arte do violão e o primeiro a tocar “violão elétrico” na Rádio Cultura de Sabará. Os outros “sócios” eram José Rangel Pertence, “Deta”, filho de Dona Rangelina e do Ourives Sr. Argemiro Pertence, e Antônio Davis Martins, “Xilau”, filho do conhecido cambista de Jogo de Bicho do mesmo apelido. O “Xilau” pai, nas horas vagas, era cobrador das mensalidades do Clube “Cravo Vermelho”, sempre de terno, chapeu e bengala.

Luiz Sette, Éder e eu somos os únicos sobreviventes daquele inesquecível e saudoso grupo.

Escudo do “Clube dos Amigos do Saber”, tendo no centro o desenho de uma coruja, símbolo da Sabedoria.

Numa noite, no auge da reunião – sempre feita com as janelas escancaradas (mas com a porta fechada para não entrar cachorro) – vejo surgir, do lado de fora de uma janela, o rosto da Tia Loló, dona da casa, com uma expressão muito apreensiva.
Corro para dar uma explicação:
– Bênção, Tia Loló. Estamos realizando na sua casa mais uma reunião do Clube dos Amigos do Saber.  É um clube de estudos e discussões sobre temas palpitantes do momento. Vou abrir a porta para a senhora entrar...
– Não, obrigada. Deus te abençoe. Até amanhã!
A Tia Loló, morava com seu marido, Tio Mandú, e suas cinco filhas na Rua Marquês de Sapucahy, na Igreja Grande, quase chegando à Praça da Matriz, e raramente saía à noite para o Centro. E, quando retornava, nunca o fazia a pé. Foi uma excepcionalidade que, voltando para casa naquela noite, ela tenha visto o movimento no casarão antigo e resolvido com toda razão se informar sobre o que estava acontecendo em sua propriedade.
Algum tempo depois, ela explicou para minha Mãe:
– Vi as janelas abertas, velas acesas e uns homens conversando alto. Achei que fosse João Gaspar que tivesse morrido. Tomei o maior susto!
                                                   ***
Obs.: Em 1959, com 19 anos de idade e por não arranjar emprego formal em Sabará, fui para Monlevade, Luiz para Ibiá, Éder para Curvelo, Jayme, “Deta” e Alfredo para Belo Horizonte. Acabou o “Clube dos Amigos do Saber”, onde muito aprendi e onde aumentei minha habilidade para falar e debater em público.

Fundadores do “Clube dos Amigos do Saber” – 1957. 
Jayme de Assis Camponez, Alfredo Sheid Ferreira, Luiz Gonzaga Sette,
Éder Martins Sobrinho e Mário de Lima Guerra
Local: Praça Sta. Rita. As edificações ao fundo foram demolidas e substituídas por outras construções, como a Agência do Banco Santander.





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Comentários

  1. Rsrsrs... Que bom viajar no tempo através de suas palavras... Que emoção ter lembranças de meus parentes e pessoas tão queridas na nossa Sabará... Glaura

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  2. Muito interessante ver, pelos relatos, sua inclinação para o ensino desde jovem. O sucesso chegou e continua. Parabéns.

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  3. Esse eh meu grande tio do coração. Dr. Mário, as suas estórias são inspiradoras! Abs

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  4. Realmente Sabará tem histórias fantásticas a serem relembradas. Esse grupo tem tudo a ver com o estilo de vida da típica cidade interiorana mineira. Estou tentando me lembrar de João Febrônio pois me recordo desse apelido. Uma história boa para ser contada seria sobre a rádio publicidade do Janey Cruz. Não teríamos quem soubesse falar sobre isso? Me lembro do footing na praça Santa Rita ao som das mensagens do Janey, isto depois da sessão das 18 horas no Cine Bandeirantes.

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  5. Ainda ouviremos muitas histórias reais e interessantes desta mente grisalha e iluminada do Sr. Mário Guerra!

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  6. Orgulhamo-nos de nosso passado na medida em que ele representou contribuição positiva para a sociedadde. É um feliz vencedor qjuem podde se lembrar e divulgar suas contgribuições e o Dr. Mário é destaque nesse privilegiado universo!

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  7. Que deliciosa leitura!!! Professor Mário, só hoje li seu texto, estou colocando em dia, minhas leituras,aqui e me deleitando!!!
    Adorável o Clube do Saber, mostra-nos, claramente o idealismo da juventude da sua época,ou pelo menos dos seus seletos amigos,vem da alma, do Ser o idealismo, a motivação para fazer o bem!!! Parabéns aos jovens do Clube e pela linda amizade, que sei,permanece entre o Sr e o Luiz Sette! Eu os admiro mais ainda!!!! Abraços!

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  8. PS:Mônica Maria Granja Silva
    Obs:Ao comentarmos, concentramos tanto nas palavras para bem traduzirmos as emoções que,quando nos damos conta, esquecemos de assinar....perdão!

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