CONTO VENCEDOR: "Tempos de Mistura Fina", de Geraldo Sérgio Guimarães
TEMPOS DE MISTURA FINA
GERALDO SÉRGIO GUIMARÃES
Vencedor da modalidade Conto da categoria Escritores Adultos
I PRÊMIO DE LITERATURA SABARENSE da ACADEMIA DE CIÊNCIAS E LETRAS DE SABARÁ.
GERALDO SÉRGIO GUIMARÃES
Vencedor da modalidade Conto da categoria Escritores Adultos
I PRÊMIO DE LITERATURA SABARENSE da ACADEMIA DE CIÊNCIAS E LETRAS DE SABARÁ.
Sabará,
1969. Dia azul de verão. Um calor insuportável.
“Difícil ficar zanzando dentro de
casa”, pensou Adriano, esperando ansiosamente a hora de sair.
O cuco do relógio de madeira trabalhada deu as caras
duas vezes, como que querendo avisá-lo de que era chegada a hora. Foi então que
se dirigiu até a Frigidaire, de linhas arredondadas. Pousou a mão na maçaneta
vertical e, com toda sua pressão palmar, puxou-a para si. O pinguim bamboleou.
Adriano ficou paralisado, observando-o rodopiar em seu próprio eixo, até se
acomodar por completo.
— Ufa! — suspirou aliviado.
Só então puxou a gaveta de verduras e pegou um tomate opaco pela condensação.
Escolheu o mais maduro. Instintivamente o esfregou contra a parte interna de
sua camiseta até que a superfície brilhasse, dando a ele a sensação de limpeza. Em seguida, apertando-o com os dedos,
partiu-o ao meio e agregou um pouco
de açúcar.
“Hum!
Chega dar água na boca...”
Depois
de colocar o short debaixo do braço, caminhou em direção à porta. Ao passar
pelo alpendre, acenou em despedida para a criada, que regava o canteiro de
hortênsias. Enquanto descia os degraus da porta da rua, disse em voz alta:
— Maria,
avisa mamãe que estou indo para a Praça de Esportes.
Maria, sem desviar os olhos das hortênsias,
assentiu com a cabeça, murmurando algo inaudível.
Apenas pôs os pés no passeio, Adriano percebeu a chegada da carroça de leite. O
som cadenciado das ferraduras contra
os paralelepípedos e o tintilintar do sino no pescoço
da mula eram sinal de leite fresco.
— Cadê o caneco, Adriano? — perguntou Zé Boi, arriando-se da carroça, um pé no chão, outro no estribo, uma mão apoiada
na carroça enquanto a outra afagava
a anca da mula.
— Zé, desculpe, estou atrasado. Maria vai te atender.
Ajoelhando-se
no degrau da porta, disse, dessa vez em tom mais cordial:
— Maria,
Zé Boi chegou. Por favor, venha receber o leite.
Adriano
desceu a rua a passos lentos, desfrutando literalmente de seu tomate, chutando
pedras e cumprimentando com educação todos quantos por ele passavam,
principalmente os que, debruçados nas janelas coloniais, brindavam-no com
largos e generosos sorrisos.
—
Boa tarde, Poeta — acenou Adriano ao vizinho.
—
Boa tarde, Adriano.
O Poeta interrompeu seu percurso, atravessou a rua
estreita, coberta de paralelepípedos polidos.
— Gostaria de escutar uma estrofe de um de meus poemas?
E, antes mesmo de
ouvir a resposta, mandou ver uma estrofe:
Sua presença acalenta
Com tal graça e tal chamego
Que
quando você se ausenta
Lá se vai o meu sossego.
O Poeta afagou a pequena cabeça
de Adriano e voltou ao seu percurso,
agora em passos largos.
—
Boa tarde, D. Adelaide!
Adriano
parou na ponta dos pés e estendeu a mão o mais
alto possível para cumprimentá-la. Ela lentamente descruzou os braços,
de pele flácida, apoiados sobre o beiral da janela
centenária, e pegou
sua mão. Adriano
a olhava de baixo para cima, como que enfatizando seu respeito àqueles
cabelos brancos, que, esticados para trás, formavam um coque, preso por uma presilha de osso, tão harmoniosamente
cobrindo anos de sabedoria.
—
Boa tarde, Adriano! — respondeu D. Adelaide.
Continuando
sua caminhada, Adriano
saltitava – às vezes com um só pé, às vezes com os dois –, meio que jogando “amarelinha”. Logo alcançou
a ponte sobre o rio Sabará. Entre um
passo e outro, visualizava, por entre as colunas do guarda-corpo, o curso das
águas escuras, levando em sua superfície pequenos fragmentos de carvão e óleo,
despejados em seu leito pela siderúrgica local.
“Quando
será que veremos essas águas limpas novamente?”, indagou a si mesmo, indignado.
O calor era denso e úmido. Em seguida entrou na pequena “venda” de Dona Bastiana. De fora, já se escutava o barulho entrecortado das hélices do ventilador de teto.
Um balcão de madeira surrada o separava do atendente. Em uma extremidade, um
rolo de “fumo de corda”. Na outra,
um baleiro giratório de vidro, com suas tampas redondas de rosquear, expondo diversas balas,
entre elas a chita, com sua chamativa embalagem amarela estampando a simpática macaca.
O vendedor, sem camisa, exibia
no peito suado um cordão dourado com uma aliança
pendurada. Ele olhou levemente por cima das lentes, afastou o jornal, retirou os óculos de leitura e os
colocou sobre o jornal.
— Boa tarde, Pitada!
— Boa tarde, Adriano —
respondeu com voz rouca, o cigarro
caído no canto da boca, lembrando ator de cinema americano.
— Tem cigarro picado?
— Sim! — respondeu
Pitada. — Temos Mistura Fina, Continental
e Kent.
— Mistura fina — falou
Adriano com voz firme, tentando impressioná-lo.
Pitada pegou o maço
coberto com celofane transparente, por cima
do papel amarelado, destacando a marca
com letras vermelhas. Em seguida, bateu o maço fechado contra a palma da mão por duas vezes. Fazia isso
para soltá-los dentro do maço. E, como em um ritual, puxou a fita vermelha para abrir a embalagem. Logo após, meteu a unha comprida
do dedo mindinho,
abrindo o papel alumínio do
lado direito do selo, e bateu
o maço contra o dedo indicador,
fazendo com que sobressaíssem alguns cigarros. Retirou dois deles e os entregou.
Adriano levou um deles até o nariz, deslizou horizontalmente, aspirando fundo.
— Cheiro bão...
Levou
a mão ao bolso, retirou uma nota e a colocou sobre o balcão.
— Pitada,
cobra junto uma paçoca e uma caixa –
da amarela – de chicletes Adams.
Pitada colocou o troco, o chicletes e a paçoca no
balcão. Antes que Adriano os pegasse, cobriu tudo com uma das mãos e, com a outra, pegou o maço de
Mistura Fina. Ergueu as
sobrancelhas, olhou firmemente o freguês.
— Largue mão desse
“mata-rato”. Isso não dá camisa a ninguém!
Um
silêncio ensurdecedor pairou no ar
por alguns segundos. Só então Pitada
empurrou tudo na direção do jovem cliente.
Adriano suspirou, cerrou os dentes, pegou a paçoca,
a caixa de chicletes, o troco, agradeceu
e saiu, não sem antes
acender o Mistura Fina com uma
binga amarrada no batente da porta.
“Igual
ao de meu Pai”, pensou em voz alta.
Já
do lado de fora, sentou em um
engradado de Brahma. Recostou-se na parede,
tragou a fumaça, fez um pequeno círculo com os lábios e, com movimentos cadenciados, usando a língua,
lançou ao ar pequenos anéis de fumaça, devagar e continuamente. Terminado o cigarro,
comeu a paçoca, abriu a caixinha
de Adams e, com dois
movimentos sincronizados, meteu as pastilhas esmaltadas na boca. Uma refrescante sensação iluminou
seu hálito. Adriano
então se levantou e, ao passar pela porta da venda, dirigiu-se novamente ao vendedor.
—
Pitada, qual a marca do seu cigarro?
—
Mistura Fina...
Adriano, dirigindo-se à ferrovia, tirou sua
camiseta, jogou-a sobre os ombros, olhou para o peito suado. Levou o
Escapulário do Carmo até os lábios, beijou-o. Matutou:
— Não é que ele
tem razão?!
Equilibrando-se
e arrastando os pés sobre os trilhos, pegou o outro “mata-rato”. Com o polegar
sobre o dedo maior, por cima do ombro, sem olhar para trás, arremessou-o ao Tempo... Abriu os dois braços, e,
olhando para o lindo “céu de brigadeiro”, lembrou-se de seu poeta
preferido... “Podemos vender nosso
tempo, mas não podemos comprá-lo de volta.”
ab
Querido leitor, assine seus comentários!
Geraldo (Ju), maravilhoso o conto, enxerguei cada passo, cada cena. Senti, emocionada, uma saudade imensa daqueles tempos juvenis. Sua descrição é fantástica.Parabéns, não conhecia esse lado seu, receba meu fraterno abraço e meu carinho de sempre.
ResponderExcluirSelma
Obrigado pelas palavras de carinho Selminha!
ExcluirBravo! Que delícia de conto! Parabéns!
ResponderExcluirObrigado Rodrigo!
ExcluirTio Geraldo, que belo texto, belas lembranças. Durante a leitura consegui visualizar todas as ações, lugares, pessoas..( algumas pessoas só imaginei,pq não as conheci rsrs.💕💕👏👏👏 Parabéns !
ResponderExcluirMarielle
Querida sobrinha! Obrigado!
ExcluirUau! Instigante do princípio ao fim. Além de um passeio poético pela nossa Sabará. Prêmiaçao muito merecida. Silas Fonseca
ResponderExcluirMuito obrigado Silas!
ExcluirJurema,relembrei do Adriano claramente. Era isso mesmo. Todo dia ia na D. Sebastiana e lá era como um filho. Sua mãe ligava sempre para minha sogra para saber dele. Ele tinha um enorme acervo sobre Sabará. Era uma figura impar.
ResponderExcluirMuito obrigado! (Juarez?) Imagino que seja, pois não assinou! Mas baseado nós comentários acredito que seja você! 🙏🙏🤣 Abraço
ExcluirQue lindo conto!!! Seu personagem nos trouxe muitas lembrancas, principalmente do seu irmão,cujos dons artísticos e sensibilidade eram inegáveis!!!Parabéns!!!!
ResponderExcluirMuito obrigado!
ExcluirTio, achei a sua escrita, sua narrativa muito especial, perfeitamente descritiva e envolvente. Fui transportada para a cena. Adorei! Parabéns! Lilisa
ResponderExcluirMuito obrigado Liliza! 😘
ExcluirLindo conto,mesmo longe da Nossa terra, tão perto no texto, Parabéns!!
ExcluirParabens caro Geraldo, excelente. Não conhecia este seu lado escritor.
ResponderExcluirObrigado Embarcharley! Nem eu mesmo conhecia! 🤣🤣 Foi o primeiro de quem sabe outros tantos! 🙏🤗
ResponderExcluirTomara! Talento você demonstrou....Com o primeiro encantou a todos, motivou-nos a tentar o caminho dos contos, homenageou nosso Adriano, receberá os aplausos da Academia, oportunamente,com as graças de Deus! Em suma, você brilhou!!!!!!!!!
ExcluirParabéns,Geraldo,fui lendo e vivenciando o conto,adorei!
ResponderExcluirMuito obrigado Gal, abraço!
ExcluirEita que beleza Geraldo. Assim não vale. Desnudou minha juventude. Minha avó morava ali na mesma rua. Esse boteco faz parte de minha história. Obrigado ESCRITOR. As letras maiúsculas falam por si.
ResponderExcluirGrannnde Massula! Obrigado por suas carinhosas palavras! Saudades de nossa infância!
ExcluirMuito bonito seu conto, Geraldo! Me trouxe muitas lembranças da minha infância na nossa querida terrinha de Minas Gerais, ainda mais que meu pai era dono de uma dessas "vendas" que tinha um balcão de madeira surrado, esse baleiro giratório e também esse inesquecível fumo de corda! Amei seu conto, pude imaginar todas as cenas com todos os detalhes que vc descreveu! Meus parabéns! Não conhecia seu lado artístico, mas valeu a pena conhecer! Abraços!!
ResponderExcluirMuito obrigado Débora! Essa vida provinciana de interior de Minas é inspiradora! 😘
ExcluirGrande Maracanã! Meus parabéns! Um grande abraço do Giba.
ResponderExcluirGrannnde Giba! Obrigado meu querido amigo! A academia me proporcionou essa linda e gratificante oportunidade! E pretendo continua aprendendo e viajando por esse caminho das letras!
ExcluirParabéns 👏 amigo Geraldo,um contato muito bem lembrado, recordações,vc realmente é um poeta ♥️ siga em frente, sucesso 🙏❤️ abraço 🤗♥️👏🙏🏻
ResponderExcluirObrigado querida amiga Alzira!🙏😘
ResponderExcluirParabens Geraldo... Belo texto! Quem venham mais. :)
ResponderExcluirObrigado Mario Jorge! Valeu meu amigo! Grannnde abraço!
ResponderExcluirQue delícia poder lê, vê e sentir na alma......o barulho das ferraduras....o leite fresquinho.....o barulho do cuco.....tomate com açúcar, novidade p mim....fumo de rolo.....cada detalhe.... Adriano fazendo argolas c a fumaça.... Parabéns meu amigo,pena está geração de celular deixando de viver e sentir tudo isto.....a poesia da vida...... Parabéns amigo, orgulhosa de você e feliz de poder compartilhar destes momentos de pura poesia da vida.,... obrigada....como adquirir o livro.....
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